Viajam sem destino certo, através do tempo de existência do homem, questões sobre seu lugar no mundo. Sobre o que é o seu mundo. Talvez os pensamentos mais universais e perturbadores nesse campo tenham relação com o quanto o humano é regido pelas leis gerais da natureza. Assim como sobre a legitimidade da ideia de que seres humanos são entidades verdadeiramente distintas e capazes de liberdade relativas às imposições dessa natureza, preparáveis para a autonomia da vontade. Entre alguns discursos possíveis, tem importância o que aponta para a cultura como elemento distintivo entre aqueles que são humanos e os que não o são, uma espécie de ruptura com a animalidade em seu sentido mais corriqueiro. Nessa linha, as relações entre pessoas e a formação de seus coletivos seriam dotadas de poderes maiores e muito distantes daqueles que fazem existir outras interações no reino animal. E, por mais perdidos que estejam em suas origens os pontos que correspondem ao nascimento dessa cultura, seus “quandos” e seus “comos”, toma-se como uma de suas matrizes fundadoras a proibição do incesto. O longevo antropólogo belga Claude Levi-Strauss (1908-2009) abordou o tema por essa ótica, com grande força de recursos intelectuais. Também Sigmund Freud (Freiberg, 1856 – Londres, 1939), pai da psicanálise, lidou intensamente com assuntos relacionados. As religiões em suas mitologias e preceitos filosóficos abraçaram vigorosamente a matéria e construíram narrativas e leis em torno dela. Inúmeros pensadores mergulharam nesse complexo tópico por canais diversos. Entre eles, poetas e prosadores.
“Lavoura Arcaica”, romance do brasileiro Raduan Nassar (Pindorama, SP, 1935) em sua riqueza, profundidade e lirismo trata das forças antagônicas e por vezes promotoras de conflitos avassaladores que tensionam o homem entre seu pertencimento à natureza e a ousada tentativa de sobrepujá-la e constituir-se como um ser social. Vale considerar que a família é o modelo mais intimamente pragmático para que se erijam capacidades de socialização.
Através de um narrador, André, jovem membro de uma família de fazendeiros residentes entranhados nas terras que possuem e que os possui, o autor dá voz a um ator destinado a representar o humano, um protagonista impessoal, universal. Ele parece buscar em nós leitores uma forma de aliança, como quem se desespera num discurso obcecado pela verdade, aquela que não se converte em saber e por isso não é dizível. André, mesmo movendo-se na névoa e enxergando o pouco que certos vieses permitem, tenta justificar o impossível, talvez com a esperança de que a culpa pelo que não deliberou, escolheu e nem sequer fez, não o esmague, assim como a todos que a carregam. Há amor pelos membros da família, pai, mãe e irmãos. Pelos seres humanos, mesmo não havendo outros viventes na cena do enredo. A lei é veiculada pelo pai (e pelo avô, já morto), a quem só cabe a André dirigir-se em oração e de quem emana um poder que pode prescindir da razão; o alimento vem da mãe, que tem a compaixão assemelhada à da terra de onde tudo brota, à da natureza, que passa ao largo do bem e do mal, que só os homens podem ver; os irmãos e irmãs são aqueles com quem se dialoga e por onde transitam os tormentos das transações interpessoais, por onde trafega o desejo indomável, sacerdote do sexo que a nada cede, nem à lei paterna, nem ao amor materno, nem à palavra ancestral que implora a ordem. Não há concretude de um coito incestuoso, mas há a punição pelo desejo, pelo desafio já demonstrado por faunos e por bacantes. E isso basta.
“Lavoura Arcaica” é um dos mais belos romances da literatura contemporânea brasileira. Um dos mais dramáticos e, não contraditoriamente, um dos mais trágicos. Tão forte no que diz que talvez tenha sido descompreendido algumas vezes. Afinal, nem sempre é possível tomar com alegria a herança dos sátiros e ninfas ou bendizer a essência telúrica que subjuga a lei e desorganiza o que pode haver de virtuoso no vínculo familiar, no entrelaçamento social. A contundência fere carnes das quais pouco se sabe. Não é suave a lavra do barro arcaico de onde viemos.
Título da Obra: LAVOURA ARCAICA
Autor: RADUAN NASSAR
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

Luis, voce sempre redireciona e amplia o meu olhar sobre alguma obra que eu tenha lido (as poucas). Benditos sejam voce e os horizontes que voce me dá, com tanta sapiência e poesia!
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Muito agradecido e honrado com seu comentário, querida e admirada amiga
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