Os contos de Jorge Luis Borges (Buenos Aires, 1899 – Genebra, 1986) apontam para os mecanismos complexos que movimentam o mundo, sem apelações para a consistência do que pode ser dito sobre eles. Convidam seu leitor a fantasiar, como ele, sem deixar de lado os aspectos mais cruciais da realidade. As questões articuladas em suas estórias têm precisão de contornos e fundamentam-se nas experiências humanas, mas as respostas, marcadas por sua rica imaginação, são polimorfas e desafiam as certezas. Como o que há de verdadeiro nos mitos de diversas culturas, suas narrativas são verdadeiras ao exibirem aquilo que motiva suas construções. Também como nos mitos, o encantamento do que ele conta mitiga o incômodo da intuição do vazio no lugar onde deveria estar o conhecimento essencial, inequívoco e definitivo sobre qualquer coisa. Suas ficções desafligem ao criarem possibilidades totalmente verossímeis, desde que mantidas em seu lugar, livres de testagens comprobatórias destinadas a confirmar ou negar a plausibilidade das tramas. Desassustam o homem diante dos mistérios da vida. Borges tem uma autenticidade rara, revela-se em sua obra, sem precisar dar a conhecer sua biografia do modo usual com que as pessoas se biografam ou são biografadas.
O conto “Funes, o memorioso” fala de um homem que, após ficar paralisado fisicamente devido a um acidente, passa a ocupar-se das lembranças que acumula. Aprende línguas e relata detalhadamente inúmeros fatos, através da espantosa capacidade mnemônica. Inicialmente o foco está na capacidade para a preservação mental de tudo o que é vivido ou imaginado, mas o autor não se detém nisso, apesar de divertir-se com a ideia. Toma forma a questão da relação entre memória e conhecimento. O narrador, contemporâneo do protagonista, desdobra suas constatações sobre o que se deu com ele, para além de sua prodigiosa memória. Este, mesmo provido com uma infinidade de informações, a ponto de detectar as singularidades de cada objeto ou ser que entrou em seu mundo, pois ele é capaz de lembrar de tudo em todos os detalhes, padece da falta de algo fundamental. Ele tornou-se (ou já era) incapacitado para fazer generalizações, para a coletivização categórica através do estabelecimento de conexões entre memórias, para a classificação pragmática de dados, para dar sentido às coisas. Com o armazenamento de reminiscências individuais, numa soma infindável, cada uma delas tem presença excessiva em seu intelecto, não deixando espaço para relações e significações. Lembrar e descrever com precisão não implicam suficiência de conhecimento. Não podendo transformar o reconhecimento de elementos concretos em raciocínio abstrato, Funes mostra desvirtude onde parecia haver o contrário. Viveu pouco, levando para o túmulo uma enormidade de imagens.
Em poucas páginas Borges faz um exercício de epistemologia, aludindo ao engano produzido por aparências, inclusive a de obviedade.
Título: FUNES, O MEMORIOSO
Conto incluído no volume: FICÇÕES
Autor: JORGE LUIS BORGES
Tradutor: DAVI ARRIGUCCI JR.
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

Dr: Luis, sempre deixando sua visão sobre a obra e deixando me refletir mais sobre os humanos e sua capacidade de se levantar em cada queda que sofreremos ao decorrer da nossa caminhada.
O importante não é por qual motivo caímos mas sim,como se levantamos de cada queda.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Obrigado por seu comentário
CurtirCurtir
Li o livro há muito tempo. Vou, agora, reler o conto. Não me lembro.
Enviado do meu iPhone
>
CurtirCurtido por 1 pessoa