Os crimes passionais podem ser multifacetados quanto a seus motivos. O que é mais aparente nem sempre é o mais relevante. E paixões são fenômenos bastante complexos. Mais visíveis em suas manifestações externas, voltadas para o outro, as paixões contêm elementos que são exclusivos de quem as experimenta, precedem qualquer alteridade. Embora possam ser interpretadas como parte das boas capacidades das pessoas, talvez sejam, em essência, a via de expressão de forças brutais, primitivas, que não se originam em eventos da relação com o mundo, mas emergem das suas profundezas obscuras. Tais forças não são nomeáveis em sua origem. São acopladas a “objetos carreadores” e assim dadas à luz. Adquirem faces diversas. Não raro são terrivelmente destrutivas. Podem aproximar o ser humano da barbárie. Distanciam-se do amor. Em “A Sonata a Kreutzer” de Lev Tolstói (Rússia, 1828 – 1910) o que há de sombrio nas paixões é tratado com a sofisticação. O texto segue um fluxo palatável para falar do tema, aliviando seu peso e parte dos sentimentos mais comuns nas relações (em princípio) amorosas. Percorre questões morais, dificuldades relativas às posições dos gêneros masculino e feminino, a natureza do casamento, a idealização no amor, o desejo carnal, a premência da posse do outro, o fantasma da traição e, mais marcantemente, a tortura do ciúme. O mote é um assassinato. O protagonista, ao constituir seu relato, evidencia a busca aflita de sentido para o ato extremo. As significações revelam-se vãs quanto mais as alegações de motivos são tentadas. Há somente desvario de cunho paranoide nestas tentativas. Restam os horrores sem contornos que agitam o ser. Curiosamente, aquilo que o autor instiga a pensar dá a impressão de ser fruto do desenvolvimento reflexivo na construção da obra e não o resultado de um planejamento prévio. É possível pensar de múltiplas maneiras sobre as questões que estruturam o texto. É notável, desde o título, o papel de certo tipo de música para o autor. Daí vem o “Sonata a Kreutzer”, que é uma peça musical composta por Beethoven. Tolstói usa-a para falar daquilo que impacta o psiquismo, que “excita a alma”, perturbando a racionalidade e o autocontrole. É música que não se faz acompanhar de uma imagem reconhecível, que não permite a recepção passiva e tranquila do som, que conduz às forças primevas, estímulo para a ação do indivíduo tomado de assalto pelas notas que os instrumentos emitem. Há exaltação e turbulência. Dissolve-se a possibilidade da paz. O escritor considerava a obra de Beethoven como dotada de grande sensualidade e verdadeiramente perturbadora, como podem ser o sexo, o amor e o ódio. Como a paixão.
Título da Obra: A SONATA A KREUTZER
Autor: LEV TOLTSÓI
Tradutor: BORIS SCHNAIDERMAN
Editora: 34