OLIVE KITTERIDGE

Nós, seres humanos, temos que arcar com a responsabilidade pelo que somos. E pelo que fazemos. Sempre. Algo que tem uma dimensão trágica e não é facilmente compreendido e nem aceito. Tal condição escapa do âmbito das concepções de justiça, é inerente à complexidade do viver. Com frequência ficamos desconcertados quando nos damos conta de que não podemos perceber com clareza em que consistem nossas escolhas (às vezes nada) e que a aquilatação de possibilidades pode ser difícil, enganosa demais ou inexistente. Não escolhemos livremente nosso modo de ser e mesmo os atos que praticamos são dotados de autonomia limitada, ainda que tenhamos obrigatoriamente que fazer escolhas, incluindo a de permitir que escolham por nós. E não podemos transferir para outros esta responsabilidade (exceto em casos de incapacidade extrema), incluindo os que nos geraram ou formaram e os habitantes do meio em que estamos implantados, em que pese o fato de que tenham contribuído ou contribuam intensamente para nossas existências. Além disso, também ficamos eventualmente surpresos quando nos damos conta do pouco que sabemos sobre tudo isto..

No romance “Olive Kitteridge” estes temas são tratados com autenticidade e precisão. Elizabeth Strout (EUA, 1956) apresenta-nos uma curiosa professora de matemática, a personagem que dá título ao livro, que aparece de modo multifacetado em diversos contextos ao longo de muitos anos. Podemos ter a impressão de estar lendo um conjunto de contos, mas se trata de um romance mesmo, com formato bastante original. Vários personagens dão voz ao pensamento da autora, quando falam dela, um coro grego num cenário da Nova Inglaterra (EUA). O que é mais fundamental no enredo é o que transborda dos eventos cotidianos de vidas simples. Mesmo havendo situações de drasticidade maior, a emoção que elas emanam flui em sutilezas quase murmuradas. Encontramos apresentações pouco usuais da intensidade nas relações interpessoais. Nada é banal. Nada é pequeno. Olive aparece em todas as partes da estória e as costura, fazendo evoluir e dando unidade aos assuntos abordados.

Olive é uma mulher sem grande refinamento intelectual, com reduzida aptidão para interações sociais e afetivas, experimenta os sobressaltos que podem ser identificados nas perturbações das trajetórias de qualquer pessoa. O que é notável nela não é o que poderíamos qualificar de excepcional, mas o que a faz próxima de quem a observa. Razoavelmente inteligente e cruamente honesta, não se isenta de registrar e admitir o que é menos palatável na vida. Não se esquiva aos desconfortos. É um tanto míope para apreciar criticamente a si mesma. Mas nunca trôpega, antes ou após suas quedas. Assume sua sorte. Vive. É fiel. Sofre. Aprende a gozar o pouco que lhe cabe.

Strout ganhou o Prêmio Pulitzer de ficção com este livro em 2009. Sua prosa é delicada. Nunca enfadonha.  Seduz o leitor menos pelos acontecimentos narrados do que pelos afetos de timbre universal que deles transcende e que são transformados em protagonistas quase palpáveis. Constrói um texto economicamente poético. Quase seco. Convence e faz o leitor ficar tão perto de Olive que ele acaba por não saber se a observa fora ou dentro de si.

Título da Obra: OLIVE KITTERIDGE

Autora: ELIZABETH STROUT

Tradutora: SARA GRÜNHAGEN

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

olive

 

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6 comentários

  1. Também adorei. A sėrie da HBO retratou com maestria a obra. Strout extrai a sensibilidade e vulnerabilidade que existe em cada um de nós de forma poética. Obrigada Luis.

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  2. Ah, Luís, que bom ver esta sua resenha. Gostei demais desse livro, li há algum tempo, me encantou, tanto na forma quanto no conteúdo. O livro me pareceu meio assim como: a vida como ela é. Li acima que alguém já lhe indicou Lucy Burton, da mesma autora, Procure-o, sim. Beijo pra você.

    Curtido por 1 pessoa

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