Adquirir uma identidade é sempre uma tarefa difícil para os indivíduos. As manobras para construi-la não se distinguem com clareza dos esforços para arranca-la da teia em que ela se produz (que, embora geradora, sempre lhe será externa e estranha) e conferir-lhe contornos, dar-lhe forma. A autonomia é, em grande parte, ilusória. Apropriar-nos de algo que acaba por ser o que chamamos de nós mesmos é mais ou menos um parto inúmeras vezes repetido. E que não se dá à luz. Ao longo do processo há que se transformar fragmentos em unidades e persistir na sina de buscar permanência onde, inevitavelmente, só há transitoriedade. Nas populações que habitam os livros, entre os muitos encantos com que podem atrair o leitor, há a expectativa do encontro de confortáveis estabilidades identitárias. Modelos bem delimitados. Alentos para mitigar a turbulência do mundo. Externo e interno. Todavia, muitos personagens trabalham para tornar claro o fato de que pessoas reais são obras inacabadas. Transformam-se incessantemente. Turbulentamente. Mesmo que não o pretendam. “Rostos na Multidão” é o primeiro romance da mexicana Valeria Luiselli. E ela passeia por estes caminhos. Utilizando experimentalismo formal, ela explora questões da construção da identidade. O conteúdo justifica plenamente a forma. Possíveis personagens, de um possível romance, são oferecidos ao leitor através de pequenos retalhos narrativos. Tornar-se-ão vivos na estória desde que os fragmentos de pessoas assumam a coerência necessária para integrarem unidades reconhecíveis. Neste percurso a própria autora vai estreitando sua relação com seus protagonistas, Declarando a própria constituição fragmentária. Ela é personagem de si mesma. Nem maior nem menor do que os outros. Sem estabilidade, como todos. Só têm voz direta além dela, um poeta mexicano, Gilberto Owen, ativo no início do século XX, e alguns outros nomes mais passageiros, mas também donos de biografias reais. Criação original sem chegar ao exotismo excessivo de alguns vanguardistas, é um livro de leitura agradável e fluente. Um prazer estético pela beleza na construção das frases e parágrafos, que mesmo redondos, sem arestas, estão repletos de possibilidades alternativas de formação de sentido. Instigante. Promotor de reflexão. Traduzido para o português com a competência necessária. Vale conhecer Valeria e sua multidão.
Título da Obra: ROSTOS NA MULTIDÃO
Autora: VALERIA LUISELLI
Tradução: MARIA LAZIRA BRUM LEMOS
Editora: ALFAGUARA