MULHERES EMPILHADAS

Seres humanos são potencialmente violentos e destrutivos. A transformação da potência em ato pode ocorrer de maneiras plurais. Agressões são cometidas contra outros humanos, outros seres vivos ou mesmo objetos inanimados. Inúmeras guerras ao longo da História, conflitos internos em diferentes sociedades, rupturas do equilíbrio ambiental e ataques de todos os tipos entre aqueles que estão afetivamente vinculados, são exemplos. O medo, em suas múltiplas apresentações, pode estar implicado. Cabe considerar as sensações de ameaça e articulações defensivas. Há também o desprezo, especialmente o despertado pela vulnerabilidade do outro. Rivalidades e incapacidade para conviver com o diverso contam, mas não são imprescindíveis. Ânsia por poder conta muito. E ainda, não se pode ignorar a existência de um tipo de gozo experimentado na dominação e, avançando um pouco mais na monstruosidade, no aniquilamento do outro. A racionalidade quando entra na equação é como incógnita. A impunidade um fermento. A civilidade parece ser causa e consequência no sucesso do controle dos comportamentos hostis entre humanos ou voltados para outros alvos; nesse bojo, relevo deve ser dado à criação de bons sistemas legais e educacionais.

Um dos âmbitos propícios aos imperativos da violência são as questões de gênero, com os temores que geram, incompreensões, amores deteriorados e ódios de primeira mão. O complexo problema do feminicídio pode incluir esses elementos, mesmo que muito mais seja necessário para explicações razoáveis e úteis. O termo refere-se ao homicídio de uma mulher especificamente determinado por esse fato, mesmo que o crime carregue disfarces através de outras motivações.

“Mulheres Empilhadas” de Patrícia Melo trata do espinhoso tema da violência do homem contra a mulher em mais de uma modalidade, com foco maior no feminicídio. É um romance difícil de classificar quanto a que categoria literária pertence, pois o impacto do tema central dá sempre o tom e define um estilo (seguramente não cabe na categoria policial). Corajosamente incisivo. Escrito com talento. Propicia uma leitura que flui, mas dói. Há uma primeira protagonista vitimada pela agressão de um namorado e pelo homicídio da mãe, cometido pelo pai. Advogada, vai de São Paulo para Cruzeiro do Sul, no Acre, com o intuito de acompanhar julgamentos de homens que cometeram esse tipo de atrocidade. Daí a estória desdobra-se em outros planos e cria uma gama vasta de impressões sobre os pontos de onde personagens e autora vêm o mundo. Até formas de pensamento mágico em “viagens” através do consumo de ayahuasca passam a circular, sempre em função do assunto chave em jogo. A personagem central, ao tentar o enfrentamento dos problemas com que se depara, aparenta um tipo de feminismo radical. Interpretando com mais atenção, a radicalidade não está no feminismo e sim na recusa à passividade, na resistência a permanecer no papel de vítima do intolerável, no avolumar a denúncia de crimes que se multiplicam e fazem a barbárie expandir-se, é um eco que não cessa à menção de cada assassinato. Ela vai dividindo o protagonismo com cada mulher empilhada na série infindável de vítimas. As assassinadas são empilháveis por semelhanças circunstanciais e pela grande quantidade que formam, mas não mais descartáveis em suas identidades e na consideração daquilo que as mata. Do mesmo modo, o que parecia crença mística nas sessões que se servem do pensamento mágico revela-se bálsamo importante para acreditar em forças redentoras, mesmo que depois o processo mostre-se um instrumento moldado como uma fábula, que ajuda a suportar a compreensão de algo avassalador. Não é afirmado um misticismo intransigente. A verdade não é estrangeira na ficção. A verdade não se desnatura, é sugerida em sua essência: o que nunca é inteiramente apreensível e só se apresenta, transitoriamente aos que se tornam capazes de desmistificar e desmitificar. O Acre passa a representar uma dimensão do Brasil, entre as muitas existentes, também empilháveis. Violado em muitos aspectos, aponta para o País em seu todo. País assolado por dificuldades de formatação, que são muitas e são visíveis através de frestas por onde aparecem o desrespeito entre humanos e na má relação deles com o meio que os abriga, o uso pervertido do poder, a assustadora desigualdade artificialmente urdida entre os que o habitam, a precariedade de entendimento do que ocorre e das possíveis soluções com chances de eficácia, a humilhação imposta pela negligência ou má-fé nas instituições. Um Brasil que contamina os outros Brasis e atrasa o desenvolvimento de todos, condenados a uma adolescência caótica. Lar de grande riqueza natural e humana, cheio de colorido cultural, mas que acaba por calçar os chinelos da pobreza. Lugar do distanciamento, que desintegra o território, a federação. Mas, ainda produzindo esperança.

O discurso da autora, para além da trama que faz evoluir firme e com rumo certo, desnuda males, tributários do grande Mal. Males que também existem em outros lugares, entre outros povos, mas que merecem e são contemplados com uma caracterização específica, patriota. Assim como os brilhos fugidios do bem, no qual é quase obrigatório insistir.

Um livro forte.

Título da Obra: MULHERES EMPILHADAS

Autora: PATRÍCIA MELO

Editora: LEYA 

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