Acontece às vezes de uma pessoa eleger “personagens” que lhe servem de inspiradores, de guias e mesmo de mitos. Os eleitos podem ser gente de um círculo de convivência, mas também podem ter vivido em outros tempos ou nem terem existido concretamente. Presumem-se neles capacidades ou saberes superiores que propiciam sua instalação em posições de maestria. Algo se dá nessas relações que faz com que aquele que se faz guiar passe por transformações mais intensas do que nos movimentos triviais do viver. Eventualmente há tentativas de incorporação dos recursos que serviriam de esteio aos mestres e são feitas tentativas de compreendê-los biograficamente.
Julian Barnes (Inglaterra, 1946) criou em “Elizabeth Finch” um romance com jeito de ensaio filosófico, ou o contrário. A personagem-título foi professora do narrador, já adulto, num curso de “Cultura e Civilização”. Mulher impactante pela peculiaridade e ousadia do que dizia e da postura na relação com seus alunos, além do muito que não mostrava, criando uma aura de mistério magnetizador e despertando curiosidade sobre quem ela seria se vista mais de perto. Mantiveram contato por décadas, discutiando ideias, mas não assuntos pessoais. Quando ela morreu legou ao ex-aluno a biblioteca particular e cadernos de notas, através dos quais ele tentou conhecê-la melhor, homenageá-la e garantir a presença dela como figura motriz em sua vida.
Elizabeth Finch parecia ser uma estoica. O estoicismo é uma corrente filosófica, surgida na Antiguidade. Valoriza o esforço por agir no campo do que é verdadeiramente suscetível à ação do indivíduo, recomenda investimentos humanos em possibilidades reais e não em idealizações ou visando o inatingível. Também propõe o desenvolvimento de resiliência para não sucumbir às dificuldades e tolerar aquilo que não se pode modificar, evitando reações inúteis; é fundamental seguir buscando o melhor somente onde isso pode ocorrer como resultado da vontade e da ação. A mestra não desperdiçava seu tempo e energia com o que não considerava importante, mas ouvia atenciosamente o que lhe diziam. Desconstruía com delicadeza proposições que julgava falsas ou fúteis. Suas opiniões eram estofadas com muitas referências a figuras históricas e mitológicas. A mais proeminente no enredo é a do imperador romano Juliano, o Apóstata. Através dele é trazido à cena o papel da apostasia na relação dos indivíduos com suas crenças. A apostasia diz respeito ao abandono de uma crença (mais frequentemente uma fé religiosa) para aderir a outra. Juliano, nascido no cristianismo, renegou-o, combateu-o e afirmou o paganismo. Contudo, pregou a tolerância com opositores e inimigos, como demonstração de força e sabedoria, além de pragmatismo. A figura de Juliano apareceu em grande número de obras literárias como em Ibsen, Voltaire, Anatole France e Gore Vidal, para citar alguns que são mencionados no livro, quase sempre tendo a apostasia como cerne. A professora, de certo modo, ensinava a apostasia e fazia uso da argumentação crítica, mas não agressiva, mirando crenças e comportamentos mecânicos e de sentidos precários, comuns nas relações sociais e mesmo íntimas. Elizabeth Finch poderia ser tomada como uma deusa pagã, a quem cabia o patrocínio de ideias claras e da conduta firme e responsável diante das possibilidades e impossibilidades na vida.
Usando a ficção como veículo, Julian Barnes propõe a insistência na busca de conhecimento (mesmo considerando a enormidade de sua incompletude) e a coragem da reflexão crítica. Ele sugere que, com algum sucesso nessas tarefas, seja possível estabelecer sentidos menos estreitos para o viver, buscar com vigor o que é consonante com a realidade menos óbvia, ganhar força e dignidade. Também uma estética.
Título da Obra: ELIZABETH FINCH
Autor: JULIAN BARNES
Tradutora: LÉA VIVEIROS DE CASTRO
Editora: ROCCO

Olá! Comentário motivador como convite para,a leitura.
Abs
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Obrigado pelo comentário, Cristina.
Abs
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