HERANÇA E TESTAMENTO

Os seres humanos, em sucessivas gerações, herdam sempre muito mais do que lhes foi formalmente testado. Parte do complexo conjunto (em permanente transformação) que confere identidade a um indivíduo foi e é continuamente recebido como herança proveniente de familiares e do mundo. Há crimes que fazem parte disso. E são sempre autorais, para perpetradores e padecentes.

A norueguesa Vigdis Hjorth (Oslo, 1959) escreveu “Herança e Testamento”, falando sobre o que se dá, o que se nega e o que se arranca violentamente nas legações. Em amplo sentido. Há partilhas impossíveis e de outras não se pode escapar.

O romance, cujo enredo parece inicialmente banal, tem como mote central um crime de estupro incestuoso de uma criança e os papeis que desempenham os envolvidos, direta ou indiretamente. Diversas modalidades de perversão criam uma teia que passa a ligar os membros do grupo familiar. As relações entre pais e filhos e entre os irmãos são estabelecidas em torno da ocultação do ato infame. A exigência de silêncio e apagamento das ações nucleares do crime tornam-se também criminosas, mesmo que não o sejam na acepção legal. Enfrentar os verdadeiros sentidos do que se inscreveu na história dos enredados é extremamente difícil. A fuga para alguma dimensão do viver em que haja dissolução desses sentidos e de suas consequências é impossível. Grilhões passam a ser arrastados ao longo das trajetórias individuais e na dinâmica grupal. Fica a nu, a crueldade de que são capazes os humanos. Uma crueldade inaugural multiplica-se nas tentativas de enterrá-la em profundezas (inexistentes) que supostamente a memória não alcança.

Embora a estória condutora seja de cunho mais íntimo, familiar, Hjorth aponta explicitamente também para a agressividade e a destrutividade humanas que se dão no universo externo às fronteiras de sua ficção. Ela aborda a perversão em âmbito social, a corrupção da ideia de civilização e das bases que a viabilizam e sustentam. Ética e justiça são facilmente descartadas em prol da impunidade que pode manter o equilíbrio de certos mecanismos de funcionamento coletivo. Os jogos de dominação/subjugação parecem importar mais do que tudo. O verdadeiro deve submergir e perder-se na construção da falácia.

O brilhantismo da escritora reside especialmente no fato de fomentar a reflexão crítica sobre os comportamentos humanos destinados a mitigar responsabilidades e culpas por atos e omissões. Sem as simplificações corriqueiras quando se trata de crimes, criminosos e vítimas, ela fala de questões abrangentes, que são aplicáveis a diferentes contextos. Uma forma de denúncia da pusilanimidade interpretativa e do escapismo quanto à consciência da implicação na construção da realidade de que se faz parte. Hjorth faz alusão ao estudo da dramaturgia, do teatro, através da profissão da narradora. Talvez uma metáfora sobre um recurso necessário para viabilizar os discursos difíceis de serem acolhidos e neles descortinar características atrozes dos seres humanos. Em parte, algo que na teoria freudiana tem relação com a expressão das pulsões e maquinaria sobre a qual o controle exercido pela razão e pela cultura é sempre insuficiente. Mas ela vai bem além disso e traz à cena a questão do comprometimento moral de cada ator. A benignidade nas lutas íntimas ou públicas parece ser mais um ideal do que motivação autêntica. Uma ilusão cara, mas pouco sustentável quando os olhos que enxergam bem. Custaria muito esforço. Assim, a fidelidade às boas intenções revela-se tarefa hercúlea.

Um texto construído de modo imbricado, onde revelações da trama e dos propósitos da autora raramente são frontais. Possivelmente um modo de conciliar forma e conteúdo.

Título da Obra: HERANÇA E TESTAMENTO

Autora: VIGDIS HJORTH

Tradução: KRIS GARRUBO

Editora: HARPER COLLINS

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