As palavras, as frases e as maneiras como estas são estruturadas, tecendo os textos, não são somente veículos de ideias completamente costuradas e prontas para serem deglutidas e regurgitadas como pedras (preciosas ou não). Costuma haver plasticidade e múltiplas camadas de significação naquilo que se pode ler, ouvir e falar. Além de carrearem bem mais do que seus autores pretenderam dizer, guardando a força geradora para a multiplicação de sentidos e implicando certa imprevisibilidade, essas palavras, frases e textos têm corpo. E este não pode ser vilipendiado. Devem ser recebidos com uma leve curvatura da cabeça espiritual do leitor para explicitar respeito. Talvez um “viva!”, para os mais entusiasmados.
As línguas evoluem e modificam-se ao longo do tempo. Decorridos períodos muito longos podem impor dificuldades de compreensão aos futuros utentes. Assim como o comportamento das pessoas, as organizações sociais e o ambiente físico também podem passar por mutações surpreendentes e desconcertantes. Todavia, os processos que alteram uma língua são lentos, complexos e dificilmente podem ser determinados por indivíduos ou grupos visando usos utilitários específicos, por melhores que sejam as intenções. Então, condenar e cancelar o uso de palavras, expressões e obras literárias pela crença de que elas possam fortalecer preconceitos ou outros tipos de manifestações incompatíveis com a civilidade é algo que muito raramente alcança a legitimidade consensual do modo esperado pelos ativistas. Mais comumente essas tentativas assemelham-se indústrias grotescamente “frankensteinianas”.
Diversas propostas e ações concretas têm ocorrido no sentido de “adaptar” textos de autores clássicos ao linguajar contemporâneo, o que se traduz por simplificação do vocabulário (sem levar em conta as perdas semânticas irreparáveis), uso de gírias, alterações de fraseado e outras adulterações. O objetivo alegado seria tornar tais autores, considerados difíceis, mais palatáveis e compreensíveis para um maior número de pessoas. Tem havido também movimentos pela supressão de vocábulos e criação de outros para o uso coloquial e formal. Projetos com intenção de inclusão social, na melhor das hipóteses.
Em “A Vida Futura”, Sérgio Rodrigues (Muriaé, Minas Gerais, 1962) aborda esse tema através de uma saborosa estória em que Machado de Assis e José de Alencar teriam descido do céu dos escritores para puxar os pés de uma professora universitária ocupada com um projeto de popularização de seus livros. Aterrissam no Rio de Janeiro do século XXI e deparam-se com a degradação do cenário urbano e de tipos de violência e injustiça social que não eram aqueles com que estavam familiarizados em seu tempo de vida na cidade. O narrador é Machado de Assis. José de Alencar quase não aparece. Sérgio Rodrigues, através das observações fictícias feitas pelo autor de Dom Casmurro, faz crítica sofisticadamente bem-humorada à pantomima empreendida por certas militâncias políticas em torno de “adequações da linguagem”. Nisso são feitas tentativas de exclusão de palavras, de uso antes corriqueiro, por serem tomadas como preconceituosas, elitistas, segregadoras e por outros motivos já existentes ou vindouros. O escritor também toca na questão da criação de vocabulário que envolve identificação de gênero, considerando as quase inúmeras variantes existentes entre humanos (muitas vezes com pretendida exclusão de formas convencionais do uso do feminino, masculino e coletivos). O grande personagem do livro é a língua portuguesa, que ao sofrer tantas agressões tornou-se uma vítima da fúria opressora dos “bem-intencionados” reformadores.
Este breve romance pode ser lido como uma degustação do bom português fartamente explorado pelo autor e de sua espirituosidade ao romper a superfície ilusória das convicções fáceis. Há um sentido de respeito e preservação pelos modos de expressão (antigos ou contemporâneos) dotados da riqueza necessária para ampliar recursos dos usuários da língua. É também um convite ao investimento no pensamento inteligente sobre contendas bastante atuais. Tudo com requintado humor e recusa da mediocridade fantasiada de intervenções que mirariam maior justiça no funcionamento da sociedade.
Fica a lembrança que buscar maior inclusão social, lutar contra racismo e outras formas de violência segregatícia relativas à cor da pele ou etnia, assim como contra homofobia e transfobia ou outras injustiças que usam as diferenças de gênero e de orientação sexual é tarefa muito mais complexa e exigente para com os que desejam ser atores honestos e eficazes nessas batalhas do que a montagem de uma patrulha repressiva, cujo treinamento não inclui o conhecimento amplo e consistente nem o exercício (muitas vezes exaustivo) da reflexão crítica e ética.
Título da Obra: A VIDA FUTURA
Autor: SÉRGIO RODRIGUES
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

Muito interessante. Assim como você, trabalho com pessoas não binárias e quando estas estão presentes, acho válido e respeitoso usar o amigues, alunes, colegues. O português é vivo!
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No mais, adoro seu site e o acompanho há tempos. Parabéns!
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Muito obrigado Marina
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