O comportamento justo tem sido um grande desafio para os seres humanos desde que surgiram as civilizações. Isso se dá tanto no âmbito do cumprimento das leis estabelecidas quanto no ajuizamento crítico sobre até que ponto elas são aceitáveis. Essas duas dimensões do conceito de justiça podem colidir, causando confusão e apontando para a necessidade de se evitar intransigências e petrificações normativas. Desde muito cedo na História as religiões cumpriram papel prescritivo sobre o que deveria (ou não) ser feito, especialmente as que passaram a ser guiadas por escrituras tomadas como sagradas.
José Saramago (Azinhaga, Portugal, 1922 – Lanzarote, Espanha, 2010) deu mostras em seus livros e pronunciamentos públicos de ter tido sempre a intenção de contribuir para melhores condições de funcionamento dos indivíduos em sociedade. Desde cedo manifestou-se quanto a seus valores e crenças. Consequentemente isso tem relevância em sua obra, embora ela abarque muito mais do que essa missão.
“Caim”, um breve romance que visita estórias do Velho Testamento, questiona crenças a elas associadas e a legitimação de “mensagens” delas extraídas. Põe em xeque o uso da Bíblia como uma espécie de guia edificante para se adquirir noções sobre o que é certo e o que é errado nas condutas. Com frequência aqueles que têm fé religiosa mais extremada atêm-se ao que ali leem ou às interpretações que os sacerdotes fazem, sem o esforço de interrogar significados e sustentabilidade lógica do que é dito. O livro começa com a expulsão de Adão e Eva do Éden ao provarem o fruto proibido, o da árvore do conhecimento e toma Caim, filho do casal, que assassina seu irmão Abel por inveja, como observador de outras cenas bíblicas, depois de debater com Deus a respeito de quem teve maior responsabilidade sobre seu ato, se o criador ou a criatura. A partir daí passa a testemunhar múltiplos eventos. São objeto de análise pelo personagem a passagem em que Abraão quase degolou Isaac, seu único filho no casamento com Sara, para cumprir uma determinação do Senhor e não se expor a Sua ira; a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra, em que o Todo Poderoso matou a quase totalidade de seus habitantes (homens, mulheres e crianças) devido ao fato dos homens desses lugares estarem preferindo copular entre si a tomarem as mulheres como parceiras sexuais; Caim torna-se amante de Lilith, a rainha/deusa/demônio provavelmente de origem suméria e anterior ao Gênesis (formalmente está ausente do texto) e com ela tem um filho; presencia os episódios da criação do Bezerro de Ouro e do retorno de Moisés com as Tábuas da Lei; compadece-se da triste situação de Jó, vítima de castigos cruéis, a despeito de sua bondade e correção, numa negociação entre Deus e Satã para que o primeiro demonstre ao segundo a fé e submissão de Jó; horroriza-se com as relações incestuosas entre Lot e suas filhas, que o embriagam para isso; está no Dilúvio, quando transita pela arca em intimidade (inclusive carnal) com a família de Noé. Tudo é um raconto cheio de humor, talvez seja o livro mais cômico de Saramago. Esse filho de Adão e Eva, marcado pelo horror de ter matado futilmente o próprio irmão, ao ser condenado a vagar sem rumo visita diferentes tempos no que seria a história do mundo, é capaz de questionar a justeza dos atos de Deus. Acusa-o de crueldade e maldade extrema. Não aceita a postulação de inescrutabilidade de seus desígnios.
Ao construir essa paródia o autor parece propor, para lá da comédia, que o exercício da ética através da reflexão crítica racional deve estar acima da fé cega (o que vale para o fundamentalismo nas adesões religiosas e a outros credos, como ideologias). Todavia, surgem as dificuldades na tarefa de aquilatar a justeza do que se preconiza e do que se faz, como um além-texto, deixando transparecer a magnitude hercúlea desse intento. Isso pode ser conjecturado em alguns trechos do romance, como quando é retratada a indignação de Caim com o fato de Deus não poupar as crianças de Sodoma e de Gomorra, que seriam inocentes, uma vez que não participavam das relações entre sodomitas, mas o protagonista não menciona a monstruosidade de Deus ao castigar, aniquilando, os homens que tinham relações homossexuais e todos à sua volta. Passa batida a condenação da homossexualidade, como crime pelo qual devem morrer os atores e seus próximos. Em outro ponto, de modo difícil de interpretar como algo que não preconceito por parte do autor, o narrador menciona uma suposta pusilanimidade dos judeus na frase “Como sempre tem sucedido, à mínima derrota os judeus perdem a vontade de lutar, e, embora na atualidade já não se usem as manifestações de desânimo como as que eram praticadas no tempo de josué, quando rasgavam as roupas que tinham vestidas e se lançavam ao chão com o rosto na terra e as cabeças cobertas de pó, a choradeira verbal é inevitável.” Enfim, é difícil mesmo atirar a primeira pedra sem ter que fugir correndo em seguida. Pior ainda seria atirá-la, ter ciência da injustiça do ato e sustentá-lo sem retroceder. Vale lembrar a necessidade da incessante avaliação ética do que está escrito, em suas camadas de polissemia, pelo leitor. Ainda que, como se dá comigo em relação a Saramago, tenha grande admiração pelo escritor. Em qualquer leitura. E sem “cancelamentos”, que acabam sendo atestados de precariedade intelectual.
Polêmicas em pauta ou à parte, Saramago foi um grande escritor (tenho a impressão de que também foi um bom homem) e “Caim” uma leitura saborosa, que em muitos momentos leva ao prazer do rizo, mantido mesmo depois de pensar se a diversão é justa. E mais do que isso, que já não é pouco, sustenta a imprescindibilidade de que as pessoas não se prostrem como crentes cegas e obedientes frente a proposições/instruções de conduta, assim como de qualquer tipo de versão do mundo.
Título da Obra: CAIM
Autor: JOSÉ SARAMAGO
Editora: PORTO EDITORA (Portugal)
