NÃO É MEIA-NOITE QUEM QUER

Criar modos não convencionais de dizer algo pode resultar em literatura sofisticada. O aclamado escritor António Lobo Antunes (Lisboa, 1942) faz isso no romance “Não É Meia-Noite Quem Quer”. Fala da reconstituição do passado através da memória e da imaginação. Uma mulher de cinquenta e dois anos, depois de um câncer de mama, sem filhos e nem projetos de futuro, sem registro de alegrias ao longo da existência e com penosa dificuldade para engajar-se no amor sensual, tanto com o marido quanto com uma colega de profissão mais velha do que ela, busca dentro de si mesma o encontro com sua família de origem e outros seres de seu mundo de criança. Visita uma casa de praia que pertenceu aos pais e onde viveu parte da infância. A antiga moradia, agora vendida e na iminência de ser entregue aos novos proprietários, serve de cenário para quase tudo o que a protagonista convoca à consciência no intuito de rever a própria história. Vida e morte convergem na reconstituição do vivido e na intenção de apropriar-se de si mesma e de tentar ainda determinar os rumos de seu destino.

As lembranças que compõem a história de alguém são recriações inevitavelmente infiéis sobre o que foi tomado por realidade em certos momentos. Carregam significados, afetos e, geralmente, uma parte significativa do presente de quem as constitui. É muito difícil separar fatos objetivos das ficções aderidas a eles, o que talvez valha tanto para a o tempo em que ocorrem como para quando são lembrados. A cadência dos acontecimentos não responde às demandas da coerência e a precisão é caracteristicamente ilusória. Lobo Antunes dá destaque a isso através do discurso fragmentado, sem pontuação convencional e nem sequenciamento linear. O leitor precisa estar atento para promover o encadeamento de frases não justapostas, que não se completam imediatamente e muitas vezes ficam definitivamente em aberto. Parece um modo de abordagem coerente com a segmentação da memória e com a plasticidade e carência de fronteiras na formação de sentidos para o que se vive. O universo dos personagens confina-se na intimidade, em singularidades. Tudo bastante difícil de compartilhar com quem está ao redor. E, como se fosse a sutil iluminação de cena, nem sempre percebida como tal, a questão da natureza da identidade das pessoas. Tópico que não admite simplismo. O escritor português, também psiquiatra, não sucumbe às generalizações e outros simulacros de sabedoria. Não apela para previsibilidades. Sugere que a solidão é apanágio da condição de ser humano. Os entendimentos sobre o que dizem, fazem e quem são os outros são esforços marcados por diferentes derrotas. Antes ou depois delas fica a estranheza do indivíduo em relação a si mesmo.

Os recursos formais empregados pelo autor contribuem para afirmar seu modo de pensar sobre os assuntos dos quais trata. Não são modalidades de experimentalismo. Nesse sentido o texto Lobo Antunes é preciso. E difícil. Pois, apesar do linguajar ser o coloquial ao modo de Portugal, o que é comunicado não o é diretamente e não é fácil a compreensão imediata nos capítulos iniciais. É necessário que o leitor se abandone à leitura para num (in)determinado ponto começar a conhecer os personagens e o que se passa com eles, entrever um romance.

Predomina o discurso da personagem principal, mas há dois capítulos em que mudam os narradores. Em um deles é sua colega de trabalho, professora como ela e que se torna sua amante, quem assume a fala, no outro um de seus três irmãos. Esse irmão esteve na guerra colonialista em Angola e ficou profundamente abalado para sempre. Nele há intensidade que se desvela abruptamente. Emerge uma crueza violenta que não é exceção nas relações humanas e por isso choca. Os dois personagens contribuem para ajustar o olhar sobre a estória.

António Lobo Antunes não oferece diversão, mas brinda aqueles que persistem na leitura com boas oportunidades de reflexão. E muito lirismo no que parece, falsamente, um vazio de poesia.

Título da Obra: NÃO É MEIA-NOITE QUEM QUER

Autor: ANTÓNIO LOBO ANTUNES

Editora: ALFAGUARA

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