O SEMINARISTA

Quase todos os livros admitem a pluralidade de interpretações. Com ou sem intenção para isso por parte do autor. Alguns textos ficcionais são construídos com o propósito de oferecer planos de leitura diferentes entre si, como se fossem duas ou mais obras contidas nas mesmas palavras. Ruben Fonseca (Juiz de Fora, 1925 – Rio de Janeiro, 2020) reconhecido mais facilmente como um bom escritor de romances e contos policiais, foi um mestre da criação de múltiplos sentidos bem articulados sob a sedução de seus enredos. Fez isto quase sempre prescindindo de metáforas estritas, com estórias polissêmicas a serviço da expressão de uma visão de mundo.

“O Seminarista”, pequeno romance cujo título é igual ao de um outro, de Bernardo Guimarães (Ouro Preto, 1825-1884), tem como fio condutor a narrativa na primeira pessoa de um matador profissional sobre suas devastadoras atividades. Ele relata alguns “casos de trabalho”, em que o ato de matar parece carecer qualquer pensamento reflexivo ou afeto associado, até chegar ao ponto em que passa a assassinar por motivações mais pessoais. Contrastando com o que se espera de alguém como o protagonista, foi seminarista e é intelectualmente sofisticado, com intensa paixão por bons livros e filmes. Apresenta-se de modo a causar certa simpatia aos olhos do leitor. Arrasta-o para uma espécie de aproximação em que pode ocorrer uma comunhão identitária e induz a suspensão ético/moral quanto ao juízo dos atos de extrema violência por ele praticados. Ao longo de seu discurso surgem inconsistências sutis e uma contradição explícita que funcionam como oportunidade de acesso a um segundo nível de comunicação do livro. Há muitas pistas “plantadas” ao longo da narrativa em que (talvez como no homônimo) Fonseca alude, por frestas mínimas, ao papel obliterante de crenças religiosas no fluir do pensamento crítico e depois isso mostra-se transportável para outros sistemas de crenças que iludem os indivíduos sempre propensos a acolher confortantes formas de engano. Ele convida aquele que está se divertindo com a ação do livro a dedicar um olhar ao possível falseamento das explicações e interpretações. Para alguns desavisados poderia parecer um erro, uma escrita atropelada e descuidada. Mas está longe disso. Assim, ‘O Seminarista” é um romance policial e ao mesmo tempo uma antítese da simploriedade frequente nessa modalidade literária. Até as citações eruditas, que podem parecer uma pretensão leviana de Ruben Fonseca são instrumentos de sua ironia para desafiar  quem quiser lê-lo com maior amplidão. E, vale ressaltar, seus livros propiciam muito prazer. Por tudo.

Título da Obra: O SEMINARISTA

Autor: RUBEN FONSECA

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

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