SOLUÇÃO DE DOIS ESTADOS

Falar sobre violência nas sociedades nunca foi tarefa de pouca monta. Especialmente quando não se omite o fato de que ela é praticada por gente. A tendência é que o tema venha embrulhado em panfletos ideológicos que geralmente levam a vieses de compreensão. Entendimentos a respeito do enorme escopo das ações violentas são presumivelmente parciais e limitados, mas muito merecedores de louvor se buscarem a isenção de crenças estereotipadas e paixões obscurantistas. “Solução de Dois Estados” de Michel Laub (Porto Alegre, 1973) trata com originalidade e coragem de aspectos difíceis relacionados à praga que parece cada vez mais disseminar-se pelo Brasil e por outras terras também. A narrativa é construída com trechos de entrevistas feitas com dois irmãos por uma documentarista alemã. Os dois transformaram-se em inimigos viscerais. Todavia, são três os protagonistas e não dois, como pode parecer numa leitura menos atenta. A entrevistadora teve o marido assassinado no Brasil (quando trabalhava numa ONG voltada para o manejo de violência) e realiza aqui um dos filmes de sua série multinacional sobre o assunto. A dupla de irmãos é constituída por uma artista com formação na Inglaterra e que ao longo da carreira especializa-se em performances de pornografia agressiva e por um educador físico/empresário que enriquece através de uma rede de academias de ginástica amalgamadas a templos religiosos evangélicos que se distribuem pela periferia de São Paulo. Os personagens são todos oriundos da classe média e profundamente marcados por motivações pessoais de ferocidades variáveis. A degradação das interações humanas, que pode consumar-se em violência explícita é interpretada de diferentes modos por eles. Nenhum vê com clareza a dimensão particular de seus intentos. Destacam-se como matéria para consideração no texto: o moralismo tosco e purgação pela religiosidade usados como poderosos instrumentos de manipulação e exploração de grandes grupos, questões sobre a eficácia transformadora na arte engajada, quais poderiam ser os efeitos do uso da vitimização como militância política e a arrogância e sectarismo contidos nos discursos “politicamente corretos”. Laub não interroga as diversidades de pensamento com vistas à paridade de posicionamentos díspares. Nem propõe tolerância como o bálsamo pacificador. Sugere a existência de características abissais dos indivíduos, talvez assustadoramente universais, que determinam incapacidades para a convivência justa e que levam a impasses e conflitos de grande potencial destrutivo. Tais elementos apresentam-se tanto em privado quanto em público. O que talvez traduza-se nas falhas incessantes do Estado para preencher espaços em que cumpriria o papel de mantenedor das forças civilizadoras. A vacância de Estado passa a dar vez a múltiplos estados paralelos (para além de dois) que coexistem numa solução onde o Mal é o solvente. A leitura deixa um travo amargo de reflexão pessimista. Apesar de não retratar a totalidade dos sujeitos, que são sempre singulares de algum modo, aponta para aquilo que parece verdadeiramente dar o tom aos mecanismos de relação nas sociedades. Em qualquer tempo e lugar. Muito no aqui e agora.

Título da Obra: SOLUÇÃO DE DOIS ESTADOS

Autor: MICHEL LAUB

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

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2 comentários

  1. Meu querido amigo Luis!

    Acompanho seus textos, fico com imensa vontade de sair lendo a tudo e a todos… infelizmente tenho tido algumas dificuldades para seguir com leituras que exijam mais concentração. Vez que outra ou vez em sempre, em estado de caos e pandemia, pensamentos ficam mais dispersos. E concentração exige um esforço adicional.

    Tenho lido muito, visto séries e filmes. Todos absolutamente simplórios, divertidos ou daquelas violências heroicas, para passar o tempo.

    Como ato de sobrevivência intelectual, concentrei meus esforços desenvolvendo meu trabalho Estorias Diferentes. E eu precisava contextualizar a autora e o por que dessas Estórias. E dediquei-me em 2020 a escrever uma narrativa autobiográfica.

    Contraponho-me ao discurso de ódio, criando, lembrando, resgatando memórias familiares e de lutas – internas e externas.

    Gostaria muito que você lesse meu livro.

    com afeto fraterno,

    Cristina

    Curtido por 1 pessoa

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