A criação de ficções pode servir a diferentes propósitos que não a literatura. Estórias são construídas para camuflar a ignorância inescapável e aliviar o desconforto que ela promove em mentes menos humildes ou mais aflitas. A realidade também é feita de falhas de conhecimento, dos espaços para os quais não há saber sustentável a não ser pela fé, mais característica das místicas religiosas formais e suas heresias, mas também própria de outros sistemas de crenças como certo modo de empregar ideologias. Narrativas tecidas para neutralizar o temor diante do ignorado têm mostrado maior poder de convencimento do que constatações objetivas. Ian McEwan (Inglaterra, 1948) falou disto em uma palestra, transformada num pequeno livro com o título “Blues do Fim dos Tempos”, sobre as lendas que tratam do fim do mundo, às vezes embutidas nos mitos apocalíticos. Proféticas, estas estórias ou previsões veiculam diferentes ideias ligadas a ameaças e recompensas. Geralmente implicam destruição e punição dos não aderentes. É curioso como resistem ferreamente ao reconhecimento de fatos dificilmente refutáveis ou à crítica racional. As datas do fim do mundo chegam e o mundo não acaba; quase de imediato é feito um novo agendamento para a tragédia final, sem que a desconfiança relativa ao prenúncio adquira grande importância. As crenças que dominam as evidências parecem ter tanta força em pessoas com alto nível de escolaridade como nas que pouco acesso tiveram à educação formal. E ocupam o lugar de verdades. Incontestáveis. McEwan cita uma pesquisa feita nos Estados Unidos, país na liderança de estudos científicos, estimando que 90% dos americanos nunca duvidou da existência de Deus, 53% é criacionista e só 12% acredita na evolução das espécies e não crê no sobrenatural. Outra informação desconcertante menciona os religiosos que, em nome do bem, não querem a paz no mundo, para que a realização de profecias do Apocalipse, a grande revelação, aconteçam com maior rapidez e desejam o aniquilamento do planeta, esperando que uma vida melhor tenha início (para quem a merecer). Deve-se levar em conta que nem sempre pesquisas de opinião refletem fidedignamente o que se passa, que estão sujeitas a vieses, mas podem ser sinalizadores importantes. O autor faz lembrar que entre humanos o fantástico e o absurdo não são somente modalidades literárias.
Título da Obra: BLUES DO FIM DOS TEMPOS
Autor: IAN McEWAN
Tradutor: ANDRÉ BEZAMAT
Editora: ÂYNÉ
Surpreso com essa pesquisa de que só 12% dos americanos acreditam na evolução das espécies! Acho que está faltando os pesqauisadores e cientistas se comunicar melhor com o público…
Marcio Gewandsznajder
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Também fiquei surpreso com a citação de McEwan. É possível que a pesquisa tenha problemas metodológicos e os resultados acabam por não refletir o País como um todo. O próprio autor, em outro ponto do texto, fala da variabilidade nos resultados de pesquisas de opinião. Obrigado por comentar.
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