As relações entre humanos e aquilo que criam podem ser bastante surpreendentes, reveladoras de aspectos sutis do funcionamento psicossocial das pessoas. Eventualmente as criações transformam o mundo de maneiras inesperadas. Às vezes indesejadas. Planejamentos só se parecem com realidades no início. O homem está sempre transitando entre a condição de produtor de idealizações e ações sobre as quais não pode prever as consequências com segurança para a de afetado pelo que criou sem que tivesse a intenção de criar. Nem sempre está habilitado para manejar bem a criação. Cada vez mais as consequências dos avanços tecnológicos, que aceleram-se em ritmos imprevisíveis, impõem a percepção disto.
Ian McEwan (Aldershot, Inglaterra, 1948) usou isso para compor uma trama ágil e sedutora em “Máquinas Como Eu”, que serve de esteio para a reflexão sobre a natureza dos valores morais e a complexidade de certos impasses éticos. Trouxe à cena também curiosos jogos armados entre o que é conjuntural e o que está no cerne dos seres. Uma estória com elementos de “História ficcional” ou ucronia (aquela que parte de informações sobre eventos e pessoas verdadeiras para desenvolvimentos fictícios alternativos).
Em Londres dos anos 1980 há celulares com os recursos dos atuais, carros autônomos, destinos diferentes dos conhecidos para políticos famosos e, especialmente, a presença do genial matemático, lógico, cientista da inteligência artificial, criptoanalista que decifrou mensagens alemãs e que foi um dos responsáveis pela vitória dos Aliados na Segunda Grande Guerra, Alan Turing, vivo e atuante (na verdade morreu em 1954 envenenado com cianeto, de modo não bem esclarecido, depois de ter sido condenado à prisão em 1952 por ser homossexual, apesar de tudo o que deu a seu país e à Humanidade). E há andróides. A sobrevivência de Turing teria contribuído para um avanço tecnológico muito maior do que o alcançado até nossos dias. Os protagonistas defrontam-se com contradições íntimas e sociais, marcas características dos processos humanizadores. Ante o andróide, com sua potente inteligência artificial dotada de enorme precisão lógica, os seres humanos são obrigados a buscar novos recursos para a identificação e qualificação de si mesmos e das sociedades em que vivem. As máquinas não conseguem suportar mecanismos tão imperfeitos como os que estruturam a razão humana. Os sentidos das ações e a legitimidade dos princípios mundanos transfiguram-se, desfiguram-se e perdem os contornos, indisfarçavelmente frágeis. McEwan mostra que a aparência de liberdade de escolha é, em grande parte, ilusória quanto a sua extensão. Para homens e máquinas. Mal e Bem podem perder as maiúsculas, deixar transparecer seu âmago etéreo e desvelar-se em mau e bom. Um romance afiado. E divertido.
Título da Obra: MÁQUINAS COMO EU
Autor: IAN McEWAN
Tradutor: JORIO DAUSTER
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS