Compreender uma personalidade não é tarefa fácil. O que somos traduz-se mais objetivamente em nossos atos, mas fica faltando muito para explicar-nos inteiramente. Nossa transparência é em grande parte ilusória. Refletindo isto, relações entre humanos são complicadas. As personalidades têm traços duradouros que podem ser característicos dos indivíduos, mas só parte deles é visível, previsível e coerente com modelos usados para categorizações. Certas experiências podem converter-nos em quem que aparentemente não éramos, algo que é denominado em psiquiatria de alteração permanente da personalidade. Outras vezes, os eventos impactantes somente acentuam ou ativam aspectos do funcionamento pessoal que até sua ocorrência mantinham-se ocultos ou “adormecidos”. Estes são temas chave em “A Velocidade da Luz” de Javier Cercas (Espanha, 1962). Há aspectos interessantes apontados pelo autor como o ônus implicado na liberdade e a atração quase hipnótica dos seres humanos pela suspensão das responsabilidades individuais e pelo funcionamento “automático”, comandado por outrem. A participação numa guerra e o ato de matar o semelhante qualificado como inimigo ou o engajamento ideológico que não admite reflexão crítica ilustram isto. Neste sentido, quase sempre há um momento de despertar em que a percepção de si mesmo e do mundo, da natureza de atos praticados em estado sonambúlico pode configurar tragédias sem fim. Cercas fala do surgimento de características (nem sempre palatáveis) que subjaziam em comportamentos brandos e que vêm à luz após grandes mudanças de contexto do que se vive, aqui positivas em princípio. O sucesso e a notoriedade alcançadas após longo período de descrença de que isto aconteça eventualmente acarretam soberba, autoimportância desmedida e desprezo por quem “ficou para trás”. Às vezes tudo se dá na velocidade da luz em relação à capacidade de elaboração psicológica e amadurecimento emocional. Repetidas vezes o escritor aborda as consequências destrutivas da “desobrigação” quanto ao funcionamento ético. E, numa dimensão estética, ele observa que o sentimentalismo, apanágio do mau gosto, denuncia o fracasso da legitimidade do sentimento e não tampona o malfeito. Resta lutar com coragem e franqueza para buscar o Bem possível.
Título da Obra: A VELOCIDADE DA LUZ
Autor: JAVIER CERCAS
Tradutor: SÉRGIO MOLINA
Editora: GLOBO (BIBLIOTECA AZUL)
Luis! Boa noite querido. Sensacional seus comentários. Sempre subjaz neles uma esperança ética, me encanto. Vc “dança” com as palavras, escreve “poeticamente”… ao ler suas resenhas, sinto tocar a minha alma. Que talento!
Me resta a pergunta que não quer calar: quando vc escreverá um livro de sua exclusiva autoria? Bjs sempre com admiração, Karina Haddad
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Muito obrigado por seus comentários tão amáveis querida Karina. Eu adoraria escrever um livro, mas não sei se algum dia terei segurança e talento suficientes para ao menos tentar. Por enquanto vou alimentando-me com os presentes destes bons escritores.
Um beijo
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