BOLOR

O conhecimento da própria identidade e a capacidade para a percepção da alteridade são desafios maiores para os seres humanos. Estão na espinha dorsal de grande parte dos anseios, aflições e ilusões que preenchem o espaço entre nascimento e morte. Também no cerne de algumas conquistas levadas a cabo. Afirmarmos quem somos exige um trabalho que não cessa ao longo da vida. Frequentemente árduo e sempre insuficiente. Reconhecermos que os outros existem para além do que conseguimos ver e entender não é nada fácil. Os outros são o que são também fora de nós e tendemos a toma-los pelas imagens que têm real autenticidade somente em nossos universos privados. Tal tendência é um obstáculo à compreensão mais realista do mundo e ao necessário amadurecimento pessoal. Um dos reveses do viver. Nas relações sociais e amorosas tentamos superar barreiras desta ordem, o que é sempre desafiador. O mais comum é sustentarmos ilusões de proximidade e de conhecimento íntimo de nossos circundantes. Todavia, as aparências não se sustentam o tempo todo e suas rupturas implicam desconforto. Repentinas percepções de que nos relacionamos com estranhos podem ser muito desconcertantes. Tendemos a buscar responsáveis ou culpados externos pelas impossibilidades com que nos deparamos nestas situações. Embrenhamo-nos em narrativas essencialmente simplórias, mesmo que bem disfarçadas para darem a impressão do contrário. Constituir um “eu” é difícil e ter uma noção razoavelmente verdadeira de um “você/tu” ou “ele” também; comungar num “nós” é, na maior parte do tempo, algo restrito ao campo exclusivo das boas intenções.

O português Augusto Abelaira (Coimbra, 1926 – Lisboa, 2003) escreveu um belo romance em torno disso, intitulado “Bolor”. É formalmente sofisticado sem ser pretencioso. O modo como foi construído reflete os temas de que trata. Tem aparência de diários e de que há três personagens falando sobre si mesmos e sobre os outros dois. Mas prevalece a incerteza para o leitor quanto a haver mesmo três personagens, dois ou um só, que tenta falar de diferentes lugares. As falas mostram esforços de cada um deles (ou de um único) no intuito de se definir e também de se pôr onde o outro está e dizer quem ele é.

O livro é bastante instigante, especialmente por abordar a as agruras enfrentadas na busca da interação amorosa, do casamento e também do que muitos veem como adultério. Essas experiências acabam por desembocar na constatação do encarceramento do indivíduo em si mesmo, dando relevo à solidão talvez inerente à condição humana. O indivíduo lutando contra isso patina, frustrando-se quanto ao que obtém no amor. Embolora em suas escuridões. Resta mitigar as decepções. E também valorizar o pouco que é possível nesses empenhos. No entanto, o que é possível pode passar despercebido, desaproveitado ou desprezado. Algo possivelmente precioso que se perde. A felicidade, menor do que a idealização, esvai-se rapidamente. Elaboram-se discursos inúteis sobre o alcance do saber sobre si mesmo e sobre a realidade das relações interpessoais, cuja solidez costuma residir mais nas frases proferidas numa folha de papel de um diário ou nos infinitos pronunciamentos que constituem as fainas diárias.

Título da Obra: BOLOR

Autor: AUGUSTO ABELAIRA

Editora: LACERDA EDITORES

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2 comentários

  1. Parece ser intrigante e desconfortante qdo percebemos o nosso próprio bolor.
    Uma leitura que apresenta as nossas parcerias internas?

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