PIERRE MENARD, O AUTOR DO QUIXOTE

Jorge Luis Borges (Buenos Aires, 1899 – Genebra, 1986) foi um escritor ímpar. Talvez todos sejam, mas ele foi mais um pouco. Nele ficaram tatuadas as leituras que fez ao longo da vida e pelas quais se apaixonou. “D. Quixote” de Miguel de Cervantes (Espanha, 1547-1616) foi declaradamente uma delas. Esta obra parece ter proporcionado grande prazer a Borges e contribuído para moldar suas concepções sobre literatura.

“Pierre Menard, Autor do Quixote” é um dos contos mais citados do autor argentino. Um desafio para os que o leem, que buscam descartar estereótipos e compreendê-lo com alguma sinceridade. Há vários planos para a formação de sentidos, talvez até independentes. Buscar referências na obra guia de Cervantes pode ser exercício profícuo, mesmo que insuficiente para interpretar o que Borges diz no conto. Ele fala de um fictício romancista e poeta francês, Pierre Menard, que teria pretendido reescrever “D. Quixote”, produzindo exatamente o romance de Cervantes. Não queria copiá-lo, queria recriá-lo sem que absolutamente nada diferisse do texto publicado no século XVII por Cervantes. Planejou aprender o espanhol falado na época, imbuir-se da fé católica tão presente nas produções literárias de então, guerrear contra os mouros, esquecer a história europeia que transcorreu no intervalo entre os séculos XVII e XX, queria ser Miguel de Cervantes. Parece algo absurdo. E é. Ironicamente reconhecido pelo narrador quando menciona a empreitada como relativamente simples e como impossível. Mas, o absurdo não é vazio.

Está dito no conto que o que se lê no intangível “D. Quixote” de Menard é algo distinto do que está no livro de Cervantes, apesar de serem idênticos em tudo: cada letra, cada frase, cada capítulo. O narrador de Borges dá os rumos para que o leitor trafegue pelos processos de interpretação da estória e o conduz a essências que não são óbvias. Cabe refletir sobre o que Borges disse e o que insinuou. Ele jogou iscas para caçadas imprevisíveis. Há muito que se fazer com o todo do conto e com trechos recortados.

Vale notar que na lista de obras de Menard, mencionado como romancista e recém falecido no tempo da narrativa, não aparece nenhum romance. Não há materialidade no único romance por ele escrito, o “D. Quixote”. Ele é incorpóreo. No entanto, é lido pelo narrador, inevitavelmente através do livro escrito por Cervantes. E Menard é a referência mais próxima do narrador, que compara as protuberantes e inevitáveis diferenças entre os dois autores em seus livros idênticos. Lembrando em parte o que poderia acontecer com dois leitores do mesmo “D. Quixote”, um no século XVII e outro no século XX (para mencionar apenas uma das infinitas diferenças entre cada leitura).

Indo por aí, pode ser tomada como vertente do que diz Borges a complexidade dos sentidos de “ler”. O que vale para algo escrito e para a leitura que se faz do mundo, da vida (interessante notar o que é dito sobre a História, mesmo como alegoria). Fica grifada como inviável a cristalização de significados, como falácia a pretensão de existência de algum deles que seja inequívoco, único e verdadeiro.

O que então poderia ser compartilhado entre determinado autor e cada um de seus leitores? Muito. Tanto, que o que se repete é exceção. Os livros contêm e produzem mundos inteiros de narrativas, de sentidos para o que se pode ler neles (e há bastante que não se alcança, pensando-se em cada leitor individualmente); é provavelmente infindável a pluralidade de interpretações cabíveis para um texto. Há inúmeros paraísos e infernos. Alguns presumíveis ou penetráveis, outros não. É preciso que se insufle vitalidade no ato de ler, que se dê vazão à curiosidade, que se ponham em marcha as engrenagens da imaginação e da capacidade de refletir criativamente. A liberdade deve dar sinais de sua presença (sempre inefável). O ato de ler faz brotarem elementos da identidade singular de cada leitor. Nunca se lê a mesma coisa nas mesmas palavras, mesmo que existam aspectos comuns nas leituras diversas. Talvez este seja um dos pontos que vibram em Borges. Ele pensou muito sobre o que pode ser “ler”. Talvez ler tenha sido uma de suas grandes motivações na vida e mote de trabalho, um modo intenso de fruição, o portal para a “Época de Ouro”, lindamente descrita no capítulo XI do primeiro volume do D. Quixote.

Miguel de Cervantes também propõe ideias sofisticadas, prolíficas que emanam do delicioso “D. Quixote”, com humor, ironia e ternura. Nada de pieguice. Diverte e faz pensar. Encanta. Como faz Borges, usando outros recursos literários.

Título da Obra: PIERRE MENARD, O AUTOR DO QUIXOTE (contido em FICÇÕES)

Autor: JORGE LUIS BORGES

Tradutor: DAVI ARRIGUCCI JR.

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

Na ilustração: foto parcial de escultura do artista português ROGÉRIO TIMÓTEO (nascido em Sintra, 1967)

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