EM MÁ COMPANHIA

Empatia e solidariedade entre os seres humanos talvez tenham sido sempre mais exceção do que regra. É comum termos a impressão de que no tempo em que vivemos houve diminuição da inclinação para isto, aumentando a aridez da convivência. Possivelmente as transformações sociais, com excesso de demandas em áreas menos permeáveis aos afetos, induzam modificações neste sentido. Todavia, há que se considerar como plausível que a convivência humanizada é uma conquista difícil de alcançar em qualquer coletividade e que seja ilusória a noção de que isso tenha diminuído na contemporaneidade. Ao lermos autores do passado identificamos dificuldades na interação entre indivíduos que nos soam familiares, semelhantes em essência ao que experimentamos em nosso agora. São provavelmente indícios de que a falta de real e estável disponibilidade amorosa é apanágio dos seres humanos do mesmo modo que o desejo de que tal fato seja transformado em seu contrário. Exceções a este funcionamento existem. Tornam-se críveis quando os comportamentos demonstram que concretizaram-se em atos as intenções anunciadas ou a idealização cantada em diversos formatos. Aos mais atentos, sensíveis e corajosos fere a superficialidade do altruísmo, compaixão ou mesmo do respeito nas relações interpessoais. Às vezes ganha força a intuição de que prevalece a indiferença de uns para com os outros e de que a couraça do egoísmo é muito difícil de transpassar. O propósito de desenvolver personalidades e sociedades que rumem para a humanização, especialmente nas ações, corresponde sempre a um grande desafio.

Vladimir Korolenko (Ucrânia, 1853-1921; que em seu tempo de vida era parte do Império Russo e pouco depois de sua morte tornou-se URSS) foi um escritor preocupado com questões relacionadas às múltiplas misérias do homem e desejoso de, mais do que caracterizá-las nas letras, contribuir para sua mitigação. Escreveu contos e novelas, além do trabalho jornalístico. Foi admirado por escritores de peso na sociedade russa, como Liev Tolstói. Possivelmente contou para a simpatia despertada por ele o seu olhar terno voltado aos desvalidos, quando um tipo de secura próxima da hostilidade dava o tom à convivência geral entre pessoas. Hoje o autor parece ser menos conhecido fora da Rússia, Ucrânia e países vizinhos. A novela “Em Má Companhia” foi fruto de suas observações e instrumento para manifestar repúdio pela pouca amabilidade do mundo para com grande parte de seus habitantes. Filho de pai russo e mãe polonesa, cresceu numa pequena cidade miscigenada quanto a nacionalidades, culturas e religiões, onde o efeito disso refletia-se na intolerância aos que eram tomados como quase inimigos por serem diferentes, como, por exemplo, ser polonês entre os russos ou ser judeu entre os cristãos ou pelas disparidades de situações socioeconômicas. Isto foi mote de muitos de seus escritos.

O livro conta a estória de um menino que ficou órfão de mãe em torno dos seis anos e passou a ter pouca atenção por parte do pai, inconformado com a perda da esposa amada. Vagando livremente, passou a frequentar espaços da pequena cidade natal em que observava a heterogeneidade entre pessoas e percebia a dureza de condições em que grande parte delas vivia. Fez amizade com um casal de crianças irmãs que vivia num cemitério abandonado em meio a muitas privações. Eles também não tinham mãe, mas contavam com os cuidados do pai, ainda que de modo precário. Através de aspectos da convivência entre o protagonista e seus amigos Korolenko explicita seu modo de entender as relações entre indivíduos num contexto em que eram patentes as dificuldades de sobrevivência de muitos, a brutalidade nas interações e as injustiças profusas naquilo que regia a estruturação social. Sua crítica não se resume à falta de resolução de problemas materiais, mas à precariedade abrangente de humanitarismo, sem espaço para a boa civilidade.

Uma novela breve, talvez com abordagens um tanto simplificadas de questões complexas, mas que toca pela universalidade do tema e pela delicadeza do autor.

Título da Obra: EM MÁ COMPANHIA

Autor: VLADIMIR KOROLENKO

Tradutora: KLARA GOURIANOVA

Editora: CARAMBAIA    

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4 comentários

  1. Oi, Luís, eu, que tanto gosto dos russos, só conheço do Korolenko um conto publicado em “Contos russos – Os clássicos”, uma reedição da Ediouro, de 2004; a coleção foi organizada e traduzida há muitas décadas por grandes nomes da nossa literatura, Graciliano, Vinicius, Rubem Braga, Marques Rebelo etc. O conto chama “Uma rapariga estranha”, vou relê-lo e depois vou procurar “Em má companhia.” Obrigada pela resenha tão boa e por me levar a 2004. Beijo.

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