O INFINITO EM UM JUNCO

A inteligência e o conhecimento são em grande medida produtos de uma lavra. Certo é que há um solo onde ela se dá, e ele pode ter propriedades alheias à vontade e ao esforço humanos, mas cultivá-lo é essencial e um trabalho sem fim. Com isso é possível alcançar um tipo de bem de natureza única entre o que os indivíduos podem conquistar enquanto fazem parte deste mundo, o conhecimento. Sua constituição é um processo bastante complexo, resultando em conjuntos de saberes que estão em permanente transformação. Os livros (cada vez mais plurais quanto a suas formas) são parte importante entre os instrumentos que viabilizam o desenvolvimento da inteligência e do conhecimento. Isso implica melhor estruturação de ideias, sua maior circulação e a chance de renovação do pensamento. As sociedades transformam-se também desse modo.

Foi fundamental a criação da escrita, especialmente do sistema alfabético para que os livros viessem a existir. Eles tiveram formatos diversos desde a antiguidade e povoaram bibliotecas que até hoje brilham no imaginário das pessoas, como as de Alexandria, Pérgamo, as romanas e outras que existem no presente. “O Infinito Num Junco” da espanhola Irene Vallejo (Zaragoza, 1979) conta a história do surgimento e evolução do livro na Antiguidade, mas é difícil dizer que seja este o cerne de seu trabalho, pois os desdobramentos de sua feitura e utilização, refletidos em percursos culturais que influenciam os acontecimentos da vida cotidiana no decorrer da história do mundo, são muito pregnantes no texto. É um ensaio delicioso. Uma viagem, ou uma multiplicidade de viagens.

A autora fornece muitas informações. Muitas mesmo. E bastante interessantes. Mas, além disso, brinda-nos com sua grande vitalidade nos exercícios de interpretação histórica e filosófica imbuídas de corajosa capacidade crítica. No livro circulam personagens sobre os quais quase todos nós já ouvimos falar, como Péricles, Alexandre, O Grande, os herdeiros de seu império, como os Ptolomeus que se sucederam até Cleópatra e que foram responsáveis pela criação da citada biblioteca de Alexandria, Júlio César e Plutarco, entre uma verdadeira multidão de celebridades. Traz à baila os grandes dramaturgos gregos, como Ésquilo, Sófocles, Aristófanes e outros, o aedo (ou talvez fosse melhor o termo no plural) Homero, o poeta Hesíodo, o primeiro historiador, Heródoto, o geógrafo (também historiador e filósofo) Estrabão, a poetisa Safo, a educadora Hipátia, os primeiros ícones da Filosofia como Sócrates, Platão, Aristóteles e Heráclito, em meio a vários outros, e chega até os produtores de cultura da contemporaneidade, como Humberto Eco, Jeffrey Eugenides, James Finn Garner e o diretor de cinema brasileiro Fernando Meirelles. Faz comentários interessantes sobre os papeis das mulheres em sociedades da antiguidade e seu acesso à informação e educação. Lembra ironicamente das tentativas de “cirurgias” ou do “cancelamento” de obras literárias clássicas em nome da adequação ao “politicamente correto” ou outros interesses e das ideias disparatadas associadas à “fúria censora” de diversos grupos sociais. Mostra que isso não representa novidade própria das radicalizações da atualidade. Como cita Vallejo, Platão já havia proposto uma educação que eliminasse o ensino do que não fosse o que considerava a boa filosofia (a sua, muitas vezes em nome de Sócrates); em outro exemplo fala da proibição de “Os Sofrimentos do Jovem Werther” de Goethe, por induzir suicídios por imitação; também da demanda recente de estudantes da Universidade de Londres pelo banimento de Platão, Descartes e Kant de cursos ministrados na instituição, sob a alegação de que fomentam racismo e colonialismo. O leitor pode se lembrar da proscrição de livros pela Igreja Católica (Index Librorum Prohibitorum), de certos contos de fadas por Evangélicos (ao mencionarem bruxas) e algumas vezes por movimentos feministas (devido ao papel submisso ou estereotipado de personagens femininos) ou ainda desse tipo de ação de exclusão incidindo em romances e outros formatos literários perpetrados por “defensores” de alguns setores da sociedade e por governos, como a tentativa de destruição na literatura e artes plásticas promovida pelo nazismo. Um tipo de violência que vem se dando, se não continuamente, em múltiplos períodos. Contrastam luz e trevas no pensar e agir, ligados a religiões, crenças, valores, ideologias e políticas em diferentes momentos e lugares. Vallejo põe em pauta a frequente intenção de ensinar o que pensar ao invés de estimular o pensar, ou, pior ainda, da preconização de restrição da informação livre e do poder de decisão sobre o que os outros podem ou devem saber, sendo isso privilégio de uma elite que detenha o poder de comando de populações convertidas em massas humanas, que não devem “pensar” e sim aterem-se à execução do que é exigido pelas lideranças.

“O Infinito Em Um Junco” pode ser lido como uma ode à liberdade e civilidade através da veiculação de informação e educação através dos livros.

Mesmo que se pense na intolerância, ganância, agressividade e destrutividade humanas como atributos não elimináveis em definitivo pelo conhecimento e inteligência, Vallejo contribui para preservar a chama de esperança em que algo possa sempre melhorar quando se adquire informação e capacidade crítica para avaliá-la, deliberando sobre sua veracidade, relevância e sentido nos contextos em que está inserida.

Título da Obra: O INFINITO EM UM JUNCO

Autora: IRENE VALLEJO

TRADUTORES: ARI ROITMAN E PAULINA WACHT

Editora: INTRÍNSECA

Intelligence and knowledge are, to a great extent, the products of cultivation. It is true that there is a soil in which they take root, and that this soil may possess properties beyond human will and effort; yet to cultivate it is essential and constitutes an endless task. Through this labor one may attain a form of good unique among those that individuals can achieve while inhabiting this world: knowledge. Its constitution is a highly complex process, resulting in bodies of understanding that are in constant transformation. Books—ever more plural in their forms—are among the most important instruments enabling the development of intelligence and knowledge. They allow for better structuring of ideas, their wider circulation, and the renewal of thought. Societies, too, are transformed in this way.

The creation of writing, especially of the alphabetic system, was fundamental to the existence of books. Since antiquity, books have taken on diverse formats and have populated libraries that continue to shine in the human imagination, such as those of Alexandria, Pergamon, the Roman libraries, and many others that exist today. The Infinite in a Reed by the Spanish writer Irene Vallejo (Zaragoza, 1979) recounts the history of the emergence and evolution of the book in Antiquity. Yet it is difficult to say that this alone is the core of her work, for the ramifications of the book’s making and use—reflected in cultural trajectories that have influenced the course of everyday life throughout world history—are powerfully present in the text. It is a delightful essay: a journey, or rather a multiplicity of journeys.

The author provides a wealth of information—indeed, a great deal of it—and much of it deeply engaging. Beyond this, however, she offers her remarkable vitality in exercises of historical and philosophical interpretation, imbued with courageous critical capacity. The book is populated by figures almost all of us have heard of: Pericles; Alexander the Great; the heirs of his empire, such as the Ptolemies who ruled until Cleopatra and were responsible for the creation of the famed Library of Alexandria; Julius Caesar; Plutarch—among a veritable multitude of celebrated names. Vallejo brings to the fore the great Greek dramatists—Aeschylus, Sophocles, Aristophanes, and others—the aoidos (or perhaps it would be more accurate to speak of aoidoi), Homer; the poet Hesiod; the first historian, Herodotus; the geographer (also historian and philosopher) Strabo; the poet Sappho; the educator Hypatia; and the earliest icons of philosophy—Socrates, Plato, Aristotle, Heraclitus—alongside many others. She reaches as well into contemporary cultural production, mentioning figures such as Umberto Eco, Jeffrey Eugenides, James Finn Garner, and the Brazilian filmmaker Fernando Meirelles.

She offers thoughtful commentary on the roles of women in ancient societies and on their access to information and education. With irony, she recalls attempts at “surgical” interventions in—or outright “cancellation” of—classical literary works in the name of political correctness or other interests, as well as the misguided ideas associated with the “censorial fury” of various social groups. Vallejo demonstrates that this phenomenon is by no means a novelty exclusive to contemporary radicalization. As she notes, Plato himself proposed an education that would eliminate the teaching of anything other than what he considered good philosophy (often his own, voiced in the name of Socrates). She cites, as another example, the banning of Goethe’s The Sorrows of Young Werther for allegedly inducing imitative suicides, and more recent demands by students at the University of London to remove Plato, Descartes, and Kant from course syllabi on the grounds that they promote racism and colonialism.

Readers may recall the Catholic Church’s Index Librorum Prohibitorum; the rejection of certain fairy tales by Evangelical groups (for their references to witches); objections raised at times by feminist movements (due to submissive or stereotyped female characters); or similar acts of exclusion applied to novels and other literary forms by self-appointed “defenders” of particular social sectors and by governments—such as the Nazi attempt to annihilate literature and the visual arts. This is a form of violence that has occurred, if not continuously, then across many historical periods. Light and darkness in thought and action stand in contrast, linked to religions, beliefs, values, ideologies, and political systems across different times and places.

Vallejo brings into focus the recurrent intention to teach what to think rather than to stimulate thinking itself—or, worse still, the advocacy of restricting free information and the power of decision regarding what others may or should know, reserving such authority to an elite that holds command over populations reduced to human masses, expected not to think but merely to execute what leadership demands.

The Infinite in a Reed may be read as an ode to freedom and civility, achieved through the dissemination of information and education by means of books.

Even if intolerance, greed, aggression, and human destructiveness are considered traits that cannot be definitively eradicated by knowledge and intelligence, Vallejo helps preserve the flame of hope—that something can always improve when information is acquired and when critical capacity is developed to evaluate it, deliberating on its truth, relevance, and meaning within the contexts in which it is embedded.


Title: The Infinite in a Reed
Author: Irene Vallejo
Translators: Ari Roitman and Paulina Wacht
Publisher: Intrínseca

La inteligencia y el conocimiento son, en gran medida, productos de un trabajo de cultivo. Es cierto que existe un suelo donde este cultivo se realiza, y que dicho suelo puede poseer propiedades ajenas a la voluntad y al esfuerzo humanos; sin embargo, cultivarlo es esencial y constituye una labor interminable. A través de ese trabajo es posible alcanzar un bien de naturaleza única entre los que los individuos pueden conquistar mientras forman parte de este mundo: el conocimiento. Su constitución es un proceso sumamente complejo, que da lugar a conjuntos de saberes en permanente transformación. Los libros —cada vez más plurales en sus formas— son instrumentos fundamentales para el desarrollo de la inteligencia y del conocimiento. Permiten una mejor estructuración de las ideas, su mayor circulación y la posibilidad de renovación del pensamiento. Las sociedades también se transforman de este modo.

La creación de la escritura, especialmente del sistema alfabético, fue decisiva para que los libros pudieran existir. Desde la Antigüedad han adoptado formatos diversos y han poblado bibliotecas que hasta hoy brillan en el imaginario humano, como las de Alejandría, Pérgamo, las romanas y muchas otras que aún existen. El infinito en un junco, de la escritora española Irene Vallejo (Zaragoza, 1979), narra la historia del surgimiento y la evolución del libro en la Antigüedad, pero resulta difícil afirmar que ese sea el núcleo exclusivo de su obra, ya que los desdoblamientos de su creación y de su uso —reflejados en trayectorias culturales que han influido en los acontecimientos de la vida cotidiana a lo largo de la historia del mundo— tienen una presencia poderosa en el texto. Se trata de un ensayo delicioso. Un viaje, o mejor aún, una multiplicidad de viajes.

La autora ofrece una enorme cantidad de información. Muchísima. Y muy interesante. Pero, además de ello, nos regala una vitalidad notable en los ejercicios de interpretación histórica y filosófica, impregnados de una valiente capacidad crítica. Por las páginas del libro desfilan personajes de los que casi todos hemos oído hablar: Pericles, Alejandro Magno, los herederos de su imperio —como los Ptolomeos que se sucedieron hasta Cleopatra y fueron responsables de la creación de la célebre Biblioteca de Alejandría—, Julio César, Plutarco, entre una verdadera multitud de figuras célebres. Vallejo convoca a los grandes dramaturgos griegos —Esquilo, Sófocles, Aristófanes y otros—, al aedo (o quizás sería más preciso decir a los aedos) Homero, al poeta Hesíodo, al primer historiador, Heródoto, al geógrafo (también historiador y filósofo) Estrabón, a la poetisa Safo, a la educadora Hipatia y a los primeros íconos de la filosofía como Sócrates, Platón, Aristóteles y Heráclito, entre muchos más. Llega asimismo hasta productores culturales de la contemporaneidad, como Umberto Eco, Jeffrey Eugenides, James Finn Garner y el cineasta brasileño Fernando Meirelles.

La autora realiza observaciones sugestivas sobre el papel de las mujeres en las sociedades antiguas y su acceso a la información y a la educación. Recuerda con ironía los intentos de “cirugía” o de “cancelación” de obras literarias clásicas en nombre de lo políticamente correcto u otros intereses, así como las ideas disparatadas asociadas a la “furia censora” de diversos grupos sociales. Muestra que este fenómeno no es una novedad propia de las radicalizaciones actuales. Como señala Vallejo, Platón ya había propuesto una educación que eliminara la enseñanza de todo aquello que no fuera lo que él consideraba la buena filosofía (la suya, muchas veces atribuida a Sócrates). En otro ejemplo menciona la prohibición de Las desventuras del joven Werther de Goethe, por supuestamente inducir suicidios por imitación, y también la reciente exigencia de estudiantes de la Universidad de Londres de excluir a Platón, Descartes y Kant de los cursos impartidos, bajo la acusación de fomentar el racismo y el colonialismo.

El lector puede recordar la proscripción de libros por parte de la Iglesia católica (Index Librorum Prohibitorum), el rechazo de ciertos cuentos de hadas por sectores evangélicos (por mencionar brujas), o en ocasiones por movimientos feministas (debido a la representación sumisa o estereotipada de personajes femeninos), así como acciones similares de exclusión aplicadas a novelas y otras formas literarias por parte de supuestos “defensores” de determinados sectores sociales y por gobiernos, como la tentativa de destrucción de la literatura y las artes plásticas promovida por el nazismo. Se trata de una forma de violencia que se ha manifestado, si no de manera continua, sí a lo largo de múltiples períodos históricos. Luz y sombra contrastan en el pensar y en el actuar humanos, vinculadas a religiones, creencias, valores, ideologías y políticas en distintos tiempos y lugares.

Vallejo pone en discusión la frecuente intención de enseñar qué pensar en lugar de estimular el acto mismo de pensar o, peor aún, la defensa de la restricción de la información libre y del poder de decidir qué pueden o deben saber los otros, reservando tal prerrogativa a una élite que detenta el poder de mando sobre poblaciones convertidas en masas humanas, llamadas no a pensar sino a ejecutar lo que dictan las dirigencias.

El infinito en un junco puede leerse como una oda a la libertad y a la civilidad a través de la transmisión de información y educación por medio de los libros.

Aunque se considere que la intolerancia, la codicia, la agresividad y la destructividad humanas son atributos que no pueden ser erradicados definitivamente por el conocimiento y la inteligencia, Vallejo contribuye a preservar la llama de la esperanza de que algo siempre puede mejorar cuando se adquiere información y se desarrolla la capacidad crítica para evaluarla, deliberando sobre su veracidad, relevancia y sentido dentro de los contextos en que se inscribe.


Título de la obra: El infinito en un junco
Autora: Irene Vallejo
Traductores: Ari Roitman y Paulina Wacht
Editorial: Intrínseca

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