ALMOÇO DE DOMINGO

Ser quem se é não é simples. Saber sobre si mesmo, conhecer-se, é uma meta, um ideal, que está sempre adiante no horizonte dos projetos levados a cabo; caminha-se muito e a não muito se chega. Conquistar a segurança precisa para transitar pelo mundo desfrutando de prazeres memoráveis e com dores que se tolerem bem, um verdadeiro milagre.  As convicções sobre a justeza do almejado e do feito, para os mais reflexivos, costumam ser vulneráveis. Falar aos outros sobre quem se é parece ligeiramente mais fácil, permite um certo engodo que encanta sem implicar necessariamente ilegitimidade, mas pode deixar na boca de quem fala um sabor excessivo de ficção e nos ouvidos de quem ouve um soar compatível com isso. Descrever algum outro é tarefa que resulta inevitavelmente em imprecisão ou mesmo em fantasia de monta. Assim como, retratar com fidedignidade o cenário ao qual se pertence exige esforços de múltiplos tipos e resiliência para tolerar obscuridades. No entanto, tudo isso, em algum momento, tem caráter de desejo fundamental, de necessidade, para os seres humanos. E tudo isso tem relação com o que se denomina identidade, cuja constituição, percepção e registro são parte dos desafios maiores da vida.

“Almoço de Domingo” de José Luís Peixoto (Galveias, Portugal, 1974) é um romance de cunho biográfico. Muito diferente de biografias comuns. O personagem central reflete, pois não há pretensão de um retrato emoldurável, um notável empresário português, Rui Nabeiro (Campo Maior, 1931), dono de um conglomerado que inclui a Delta Cafés. O livro não tem como foco a descrição de eventos objetivos da longa vida do biografado, não constrói um perfil do homem público e noticiável que ele parece ter sido a partir de certo ponto de sua trajetória. Aborda a intimidade de um homem, um personagem. A intimidade que talvez seja o que há de mais relevante no que se vive: onde reside o modo mais autêntico de sentir o mundo e a si mesmo nele. Falar dela é buscar as transparências no âmago sagrado dos seres. Conta muito nesse campo aquilo se deu em seus vínculos afetivos e com isso as imagens captadas ou mais livremente desenhadas nas melhores formas e cores.

Narrado através da primeira e terceira pessoas, o romance é dividido em três dias, que também são uma vida inteira. Eles precedem o aniversário de 90 anos do senhor Rui. No pensado e dito que dão cadência a essas vésperas o espírito de um homem (amálgama do protagonista e do escritor) oferece-se para interagir com o leitor. Não para afirmar exatamente quem é, mas para grifar que há coisas que justificam o amor por viver e um modo de ser. Apontando para o essencial na história que cada um forja para si e na qual é forjado pelo mundo. São elementos contidos em fragmentos de sucedidos que, através da rememoração assinalam a imensidão dos sentimentos. Não há medidas acuradas para essa ordem de coisas. Apela-se para a sensibilidade de quem pode e quer ter noção deles. Convocam-se capacidades para perceber a amplidão de certas possibilidades humanas. As palavras, mesmo que não digam tudo, são muito. Seus sons ganham um tipo de materialidade única, acariciante, quando declaram, especialmente através dos nomes próprios, a existência de amados, na forma de pessoas, lugares ou acontecimentos. Presenças e ausências. O texto é um poço de beleza própria do saber dizer, do bendito bem dito. Há enorme delicadeza no olhar e no fazer, do protagonista e do autor. Ela o motor que conduz todos os envolvidos: personagens brotando do escritor (talvez o homem real biografado e os seus) e também o leitor que pode ler o que está nestas páginas.

“Almoço de Domingo” fala sobre e é em si mesmo uma forma de legado. Para lembrar. E inspirar.

Título da Obra: ALMOÇO DE DOMINGO

Autor: JOSÉ LUÍS PEIXOTO

Editora: QUETZAL (Portugal)

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