O ESTRANGEIRO

O romance “O Estrangeiro” é talvez o livro mais valorizado de Albert Camus (Argélia, 1913 – França, 1960). Com formação acadêmica em Filosofia, Camus teve produção extensa e diversificada: romancista, ensaísta, dramaturgo e trabalho jornalístico. Interpretou o mundo em que viveu com clareza e coragem. Criticou duramente os regimes totalitários e seus apoiadores, incluindo o stalinismo na União Soviética (aprovado ou venerado por grande parte dos intelectuais franceses), com o que perdeu amigos próximos e ganhou inimigos em diferentes distâncias. Rejeitava e combatia o que considerava injusto. Não aderiu a ideologias estabelecidas e nem religiões. Também não foi um existencialista típico, ao contrário do que se diz frequentemente. Não cria com facilidade e registrava a falência da razão, denunciando os disfarces do absurdo “natural” da vida. Recebeu o Prêmio Nobel em 1957. Morreu aos 46 anos num acidente de automóvel. Sobre sua morte lançou-se a suspeita de assassinato por suas posições, que a muitos incomodavam. Isso nunca se provou.  

“O Estrangeiro” traz uma estória narrada na primeira pessoa pelo protagonista que, relacionando-se superficialmente com quem o cercava, deixou-se envolver quase automaticamente num conflito alheio e matou um homem. Confessou o crime e foi condenado à morte. Antes desse evento sua mãe havia morrido num asilo para idosos e ele não deu as demonstrações usuais de luto aguardada por quem o observava. As duas situações interligam-se na trama. Mas, por que esse título?

Ser estrangeiro implica não pertencimento, ser, em alguma instância, estranho aos circundantes. Às vezes isso pode ser traduzido pelo não compartilhamento de ideias, pela falta de comunhão nas crenças. O personagem encarna tal condição. E ainda mais, sente-se afetivamente distanciado de outras pessoas, experimenta o que se passa ao redor de modo muito distinto delas, que não conseguem compreender o que se dá com ele. A impossibilidade de entendimento sobre o protagonista não impede sua condenação para além do crime que cometeu e, ao contrário, torna-a mais radical e truculenta, como fica claro no decorrer de seu julgamento. O autor parece questionar o quanto podem ser justos os sistemas judiciários e quem os elabora. Grifa a pregnância de valores pouco inteligentes determinando condutas extremas na individualidade ou na coletividade. Há uma curiosa inversão no enredo quanto ao que é ser sensível. O protagonista, tomado como desalmado pela carência de sensibilidade, é aquele capaz de perceber e aceitar a fragilidade e fugacidade da razão, a falta de sentido nos comportamentos, a pantomima nas demonstrações sentimentais estereotipadas e a perversão nas regras sociais. Não vê cabimento em justificativas ou em se defender de acusações. E é resiliente para querer a vida mesmo assim. Ele aparenta frieza na acuidade de análise, mas acima de tudo sustenta o compromisso em ser verdadeiro. O que o torna mais fundamentalmente estrangeiro na sociedade. Camus põe à prova a ideia de liberdade, posicionando-a num contexto de tragédia que habitualmente é travestido de drama. Na perspectiva dele, são grandes as limitações de escolhas claramente deliberadas naquilo que se vive e os valores podem ter sua legitimidade dissolvida pelo que há de mais essencialmente primitivo e involuntário no homem. Os atos são muito mais e muito menos do que se pretende que sejam. Aqui não há criação livre do ser e nem dos caminhos a serem trilhados. Resta um modo de contemplação e assunção do que existe realmente na humanidade dos seres e de seu absurdo inerente.

Leitura que exige cuidado.

Título da Obra: O ESTRANGEIRO

Autor: ALBERT CAMUS

Tradutora: VALERIE RUMJANEK

Editora: RECORD

The Stranger

The Stranger (L’Étranger) is perhaps the most celebrated novel by Albert Camus (Algeria, 1913 – France, 1960). Trained in philosophy, Camus produced an extensive and varied body of work as a novelist, essayist, playwright, and journalist. He interpreted the world he inhabited with lucidity and courage. A severe critic of totalitarian regimes and their sympathizers—including Stalinism in the Soviet Union, then admired or even venerated by much of the French intelligentsia—he lost close friends and gained adversaries of every kind. Camus rejected and opposed all forms of injustice. He adhered to no fixed ideology and no religion. Nor was he, contrary to what is often claimed, a typical existentialist. He was skeptical of blind belief and recorded the failure of reason, exposing the disguises of life’s “natural” absurdity. Awarded the Nobel Prize in Literature in 1957, he died at forty-six in a car accident—an event that later provoked suspicions of assassination because of his uncompromising political positions, though such claims were never proven.

Narrated in the first person, The Stranger follows a man who lives almost mechanically, maintaining only superficial relations with those around him. Through a series of chance events, he becomes entangled in another man’s quarrel and kills him. He confesses to the crime and is sentenced to death. Before this, his mother had died in a home for the elderly, and he failed to display the expected signs of mourning—an omission that shocks those observing him. These two events intertwine throughout the narrative. But why this title?

To be a “stranger” is not merely to be foreign to a place, but to stand apart—to not belong. Sometimes this alienation arises from a lack of shared beliefs or an inability to participate in the common emotional code. The protagonist embodies such estrangement. He feels a profound distance from others, experiences the world in a radically different manner, and is therefore misunderstood. This failure of understanding does not spare him from judgment; rather, it intensifies it. During his trial, his inability—or refusal—to conform to conventional expectations is treated as the greater crime, eclipsing even the act of murder itself. Camus thus questions the legitimacy and moral clarity of judicial systems and those who create them, underscoring how unreflective values can dictate extreme responses, both individual and collective.

There is a curious inversion in the story’s notion of sensibility. The protagonist, deemed heartless for his apparent lack of emotion, is the only one capable of perceiving and accepting the fragility and fleetingness of reason, the emptiness of routine behavior, the pantomime of conventional feeling, and the perversity of social rules. He finds no logic in excuses or self-defense—and yet, paradoxically, he clings to life. What seems coldness is, in truth, the lucidity of one who refuses to lie. Above all, he remains faithful to authenticity, which makes him the truest “stranger” of all.

Camus subjects the idea of freedom to a severe test, situating it within a tragedy habitually disguised as mere drama. From his perspective, human choice is narrowly confined; values themselves are fragile, dissolving before what is most primitive and involuntary in us. Human actions are both far more—and far less—than they appear to be. There is no pure, free creation of the self, nor any wholly chosen path. What remains is a form of contemplation and acceptance of what genuinely exists in human nature—and of its inescapable absurdity.

A reading that demands care and quiet attention.

Title of the Work: The Stranger
Author: Albert Camus
Translator: Valerie Rumjanek
Publisher: Record

2 comentários

  1. “Uma leitura que exige cuidado”. Observação pertinente, uma vez que a obra parece simples mas, na verdade, traz reflexões complexas. Camus deixa muitas ideias em aberto, exatamente para que leitor atento reflita por si só, sobre a singularidade da vida! Há uma forma “correta”para o viver? Há algum sentido na vida?

    Por algum motivo, lembrei-me de Nikos Kazantzakis “Assim, pois, a salvação do Universo é ao mesmo tempo nossa própria salvação. A solidariedade entre os homens já não é um luxo dos corações sensíveis, mas uma necessidade, uma profunda necessidade de autodefesa. Como na batalha, a salvação de teu próximo é também a tua.”

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