“O Jogo da Amarelinha” de Julio Cortázar (Ixelles, 1914 – Paris, 1984) tem título bastante coerente com seu conteúdo, um jogo. Intensamente intelectual, sem arrogância, mesmo brincando com certos artifícios pretensiosos como a invenção do “glíglico”, uma nova língua sem tradução e útil somente no contexto das paixões mais sensuais, quando o que não é carnal é supérfluo. Prosa vestida de romance. Quase como um disfarce. Ele constrói um mosaico de observações agudas e pessoais sobre questões relevantes (não totalmente desveladas no texto) e por vertentes plurais. Tais observações são produzidas enquanto ele aquilata os alicerces daqueles que empenham-se pelo vanguardismo. Os bravos em rejeitar o “velho”, tão estranho para eles quanto o “novo” que desejam compreender e fazer coincidir com suas identidades. No olhar do autor/protagonista delineiam-se certas engrenagens que parecem mover o mundo para refaze-lo sempre idêntico, criando a fantasia de transformação. O plano do livro mais assemelhado a uma estória apresenta personagens transitando pela Paris do final da década de 1950 e início de 60. No vai e vem que os ocupa eles caminham para espaços atemporais e sem geografia específica. Um homem, o protagonista, atenta para si mesmo e para o que o cerca e talvez o forme; quer situar-se, compreender de que matéria são feitos ele e o conjunto de elementos ao qual pertence. Onde se articulam? Para que servem? Tudo parece ser pesado em sofisticadas balanças de imprecisão e atado com elásticos. E, nisto reside um dos aspectos mais charmosos da obra. Os sentidos dados a cada coisa e ao impossível “todo” iludem, parecendo que orientam, até que sua transitoriedade temporal e contextual torna-se um sentido em si. Os discursos, quanto mais afirmativamente são pronunciados mais frágeis revelam-se. De tanto falar sobre qualquer coisa (e tudo parece fundamental) um estrangeiro, buscando capturar as referências que miniaturizaram seu mundo de origem, chega ao “nonsense”, recheio de crenças postuladas com aguerrimento algumas vezes e em tom blasé em outras e que escamoteiam vazios suspeitados. Numa época em que rejeitava-se tão veementemente os modos de vida dominantes até então, o anunciado “novo” acaba por nada inovar e quanto mais tenta defender sua função Neste quesito mais risível se torna. Neste sentido, talvez “O Jogo da Amarelinha” seja um não romance, como alguns o qualificam. Cortázar faz muitas citações, diretas ou enviesadas, as quais só podem ser compreendidas no contexto onde aparecem e tendem a convergir para um pensamento: o de que a mitificação é inútil; não há autor, pintor, estadista, filósofo, etc, que possa ser veículo de verdades universais, pois estas não existem, são somente saberes transitórios, produções do intelecto dotadas de sentido num cenário específico, jamais aplicáveis de modo incondicional. É leitura para ser degustada, sem tempo para ser concluída. Um exercício para dar prazer, pela inteligência do que é dito, pelo estímulo a percorrer estradas na direção oposta à mediocridade de crenças em raízes profundas e consequências longevas de qualquer ideologia. Cortázar era argentino, embora tenha nascido na Bélgica (retornou à Argentina aos 3 anos) e vivido parte de sua vida na capital francesa, e é um dos grandes representantes da literatura latino-americana. Teve percepções incomuns no mundo em que viveu. Como o são ainda hoje.
Título da Obra: O JOGO DA AMARELINHA
Autor: JULIO CORTÁZAR
Tradutor: ERIC NEPOMUCENO
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
“Hopscotch,” by Julio Cortázar (Ixelles, 1914 – Paris, 1984), bears a title that aligns most coherently with its content: a game. Intensely intellectual yet never arrogant, even when toying with certain high-minded artifices—such as the invention of “gíglico,” a new language without translation and useful only within the context of the most sensual passions, when anything not carnal becomes superfluous. Prose dressed as a novel. Almost as a disguise. Cortázar constructs a mosaic of sharp, personal observations on matters of consequence (not entirely unveiled in the text) and through plural paths. Such observations emerge as he weighs the foundations of those who devote themselves to avant-gardism—the brave who reject the “old,” which is as strange to them as the “new” they long to understand and make coincide with their identities. In the gaze of the author-protagonist, certain mechanisms take shape, as if they were the gears that move the world in order to remake it always identical to itself, creating the illusion of transformation.
The plane of the book most akin to a storyline offers characters wandering through Paris in the late 1950s and early ’60s. In their comings and goings, they drift toward atemporal spaces lacking any defined geography. A man—the protagonist—turns his attention to himself and to what surrounds him and perhaps shapes him; he seeks to situate himself, to understand of what matter he and the constellation of elements to which he belongs are made. How do they articulate? What purpose do they serve? Everything seems to be weighed on sophisticated scales of imprecision and tied together with rubber bands. And in this lies one of the most charming features of the work. The meanings attributed to each thing, and to the impossible “whole,” deceive us, seeming to offer orientation until their temporal and contextual transience reveals itself as a meaning in its own right. The more affirmatively speeches are uttered, the more fragile they become. By speaking so much about anything—and everything seems essential—the foreigner, seeking to capture the references that miniaturized his world of origin, ends up at nonsense, that stuffing of beliefs fiercely asserted at times and delivered with a blasé tone at others, concealing suspected voids.
In an era when dominant ways of life were so vehemently rejected, the proclaimed “new” ultimately innovates nothing, and the more it strives to defend its purpose, the more laughable it becomes. In this sense, perhaps Hopscotch is a non-novel, as some have labeled it. Cortázar offers numerous citations, direct or oblique, which can be understood only within the precise context in which they appear, and which converge toward a single thought: mythification is useless; there is no author, painter, statesman, philosopher, or the like who can serve as a vehicle for universal truths, for such truths do not exist. They are merely transient knowledges, products of the intellect endowed with meaning within a specific setting, never applicable unconditionally.
It is a book to be savored, with no deadline for completion. An exercise in pleasure, owing to the intelligence of what is said and the invitation to wander roads leading away from the mediocrity of beliefs in deep roots and long-lasting consequences of any ideology. Cortázar was Argentine, though born in Belgium (he returned to Argentina at age three) and having lived part of his life in the French capital, and he stands among the great representatives of Latin American literature. He had uncommon perceptions of the world in which he lived—as uncommon as they remain today.**
Title of the Work: HOPSCOTCH
Author: JULIO CORTÁZAR
Translator: ERIC NEPOMUCENO
Publisher: COMPANHIA DAS LETRAS
“Rayuela”, de Julio Cortázar (Ixelles, 1914 – París, 1984), posee un título plenamente coherente con su contenido: un juego. Intensamente intelectual, aunque nunca arrogante, incluso cuando juega con ciertos artificios pretenciosos —como la invención del “glíglico”, una lengua nueva sin traducción y útil únicamente en el ámbito de las pasiones más sensuales, cuando todo lo que no es carnal se vuelve superfluo. Prosa vestida de novela. Casi un disfraz. Cortázar construye un mosaico de observaciones agudas y personales acerca de cuestiones relevantes (no del todo desveladas en el texto) y a través de vertientes plurales. Tales observaciones surgen mientras él aquilata los cimientos de quienes se empeñan en el vanguardismo: los valientes que rechazan lo “viejo”, tan extraño para ellos como lo “nuevo” que desean comprender y hacer coincidir con sus identidades. En la mirada del autor/protagonista se delinean ciertas engranajes que parecen mover el mundo para rehacerlo siempre idéntico, creando la fantasía de la transformación.
El plano del libro más cercano a una historia presenta personajes que transitan por el París de finales de los años cincuenta y comienzos de los sesenta. En sus idas y venidas avanzan hacia espacios intemporales y sin geografía precisa. Un hombre —el protagonista— vuelve su atención hacia sí mismo y hacia lo que lo circunda y quizá lo conforma; quiere situarse, comprender de qué materia están hechos él y el conjunto de elementos al que pertenece. ¿Dónde se articulan? ¿Para qué sirven? Todo parece ponderado en sofisticadas balanzas de imprecisión y atado con elásticos. Y en ello reside uno de los aspectos más encantadores de la obra. Los sentidos otorgados a cada cosa y al imposible “todo” engañan, como si orientaran, hasta que su transitoriedad temporal y contextual se vuelve un sentido en sí misma. Los discursos, cuanto más afirmativamente se pronuncian, más frágiles se revelan. De tanto hablar sobre cualquier cosa —y todo parece fundamental— un extranjero que intenta capturar las referencias que miniaturizaron su mundo de origen llega al nonsense, relleno de creencias enunciadas con aguerrimiento unas veces y con tono displicente otras, que encubren vacíos sospechados.
En una época en que se rechazaba con tanta vehemencia las formas de vida dominantes hasta entonces, lo anunciado como “nuevo” acaba por no innovar nada; y cuanto más intenta justificar su función, más risible se vuelve. En tal sentido, quizá Rayuela sea una no-novela, como algunos la califican. Cortázar hace numerosas citas, directas o sesgadas, que solo pueden comprenderse en el contexto en el que aparecen y que tienden a confluir hacia un pensamiento: que la mitificación es inútil; no existe autor, pintor, estadista, filósofo, etc., capaz de vehicular verdades universales, porque estas no existen; son apenas saberes transitorios, producciones del intelecto dotadas de sentido en un escenario específico, jamás aplicables de modo incondicional.
Es una lectura para ser degustada, sin tiempo para concluirla. Un ejercicio destinado al placer, por la inteligencia de lo que se dice y por el estímulo de recorrer caminos que van en dirección opuesta a la mediocridad de las creencias en raíces profundas y consecuencias duraderas de cualquier ideología. Cortázar era argentino, aunque nacido en Bélgica (regresó a la Argentina a los tres años) y habiendo vivido parte de su vida en la capital francesa; es uno de los grandes representantes de la literatura latinoamericana. Poseía percepciones inusuales del mundo en que vivió, como aún lo son hoy.**
Título de la obra: RAYUELA
Autor: JULIO CORTÁZAR
Traductor: ERIC NEPOMUCENO
Editorial: COMPANHIA DAS LETRAS

Gosto muito de seus comentários sobre literatura…é um prazer e uma honra partilhar com você o site Amantes da Literatura.
CurtirCurtido por 1 pessoa
A honra é minha. Muito obrigado pelo comentário
CurtirCurtir
para.tiana@yahoo.com.br
CurtirCurtido por 1 pessoa