O escritor húngaro Imre Kertész (Budapeste, 1929-2016), ganhador do prêmio Nobel em 2002, sobreviveu à provações extremas. Vítima dos nazistas, foi prisioneiro em Auschwitz e depois Buchenwald. Viu morrer muita gente e ruírem compreensões de mundo tidas como sólidas. Foi libertado ao fim da Segunda Guerra Mundial e deixou-se entorpecer com a esperança de um mundo mais justo, vindouro logo após esta fase. Encantou-se com as teorias marxistas-leninistas e acreditou num bom porvir. Isso durou pouco. Quando a Hungria foi dominada pela URSS e Stálin passou a representar um opressor não menos deletério do que Hitler, Kertész voltou-se para a busca de algum entendimento sobre razões para a opressão, violência e destruição entre humanos, fazendo com que aniquilem o que podem ter/ser de melhor. Tornou-se atento às engrenagens dos regimes totalitários.
“A Língua Exilada” é um livro que reúne ensaios e transcrições de conferências do autor. Entre as conferências há “O Intelectual Inútil”, abordando o papel que os intelectuais podem desempenhar enquanto participantes das sociedades onde vivem. Formula questões relevantes. Kertész fala da relação entre o construto intelectual de formatação ideológica, destinado a explicar e moldar o comportamento do homem em sociedade e a experiência viva inerente à existência palpável/inescapável do ser para além das teorizações e fantasias. Destaca desdobramentos imprevisíveis de adesão às posições cegas aos riscos que carreiam, de militâncias fanáticas e também da indiferença diante da realidade.
Importante dizer que sua crítica dirige-se aos intelectuais aprisionados e servos das ideologias que são esteios do poder e não a quaisquer esforços intelectuais para compreender e atuar no mundo. Seu ponto é que a experiência concreta do viver, o reconhecimento da realidade, é ou deveria ser sempre muito maior do que os construtos ideológicos podem abarcar. A complexidade e as incessantes transformações da vida exigem bem mais do que os doutrinados e doutrinadores são capazes ou estão dispostos a empreender, a oferecer ou a defender. Os intelectuais despidos de vaidades fúteis e da ânsia desmedida por poder, empenhados no reconhecimento de elementos que fundamentem a realidade que pretendem conhecer e eventualmente modificar, aqueles que não rejeitam a noção de limitação de teorizações enquanto instrumentos provisórios e de validade circunstancial, estes sim podem exercer com propriedade ética seu papel nas sociedades em que vivem. Os regimes totalitários, “da cruz gamada à foice e martelo”, não podem prescindir da anulação da reflexão crítica e da criatividade dos indivíduos pensantes neles inseridos. Não admitem o indivíduo em si, exigem sua transmutação em componentes da massa, sem autonomia para olhar, analisar, ver, dizer e reivindicar. Não há espaço para que se expressem livremente. É exigido que sigam os líderes, detentores absolutos do poder e armados da força para submeter até a extinção os rebeldes efetivos ou potenciais. As cúpulas dominantes atuam preventivamente impedindo a insurgência de rebeldes que ousem pensar por si e exprimir ideias “perigosas”, de tudo o que possa escapar a suas determinações. Sufocam a inteligência em sua singularidade, espontaneidade e compromisso com o que é verdadeiro. Assim, prevalecem os “intelectuais inúteis”, que auxiliam a criação e, principalmente, a justificação das premissas do opressor, impingem narrativas manipuladoras. Tudo o que lhes é permitido é a repetição estéril do que já está previamente estabelecido. Estes intelectuais foram sempre ou tornaram-se em algum momento simulacros do que se crê que sejam, pairando numa certa vacuidade, complacentes com a violência do poder absoluto, embusteiros.
Kertész ainda menciona o papel do artista absorvido pelo totalitarismo, que produzindo arte engajada nesta atmosfera também se torna estéril, desnaturando a manifestação artística enquanto instrumento renovador da humanização e civilidade, e pondo em seu lugar o arremedo, vazio por dentro e medíocre por fora.
Título da Obra: O INTELECTUAL INÚTIL, em A LÍNGUA EXILADA, pgs. 136-146
Autor: IMRE KERTÉSZ
Tradução: PAULO SCHILLER
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
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