Philip Roth, um dos grandes escritores do mundo, escreveu em 1988 um relato autobiográfico (talvez fosse melhor denominá-lo de meta-autobiográfico) intitulado “Os Fatos”.
Ele inicia o livro com uma carta endereçada ao principal personagem de sua ficção, Nathan Zuckerman (qualificado por muitos como seu “alterego”). Nela Roth submete o texto à avaliação de Zuckerman para que ele diga se vale a pena publicá-lo. No final o personagem dá seu parecer. São duas dimensões de “Os Fatos” que se complementam e ampliam o sentido da obra, contribuindo para enriquecer a percepção do leitor quanto a seus outros trabalhos: o intuito de retratar o mundo, com algum distanciamento e a inevitabilidade de retratar-se no mundo, que toma feições de patrimônio do autor.
O suposto intento de buscar os fatos, ou os fragmentos destes, que estão assentados na gênese da ficção de Roth parecem ser o foco maior de criação. Todavia, estes fatos revelam-se um tanto pobres nesse formato de descrição, na tentativa de os resgatar em sua “materialidade”. Parecem desprovidos de cor, charme e até de autenticidade suficientes, ainda que deixem entrever (e somente isto) aspectos da história de um homem inteligente, de personalidade complexa e de visão de mundo sofisticada. Aí instaura-se a a consciência de inevitabilidade de considerar a identidade pessoal como questão maior em sua reflexão. Seus livros tratam com frequência da articulação entre sua formação judaica num mundo “goi” e o forte pertencimento a seu país de nascença, os Estados Unidos. Mas, ele acaba por tratar de muito mais do que isto. Roth pensa sobre o indivíduo em suas grandezas e misérias, suas contradições inescapáveis, inconsistências, singularidades resistentes às forças sociais, na dura busca de se estar bem no e com o mundo em que se vive, sem ser estrangeiro nele. Pouco a ver com nacionalidade, cultura ou formação religiosa no modo mais corriqueiro de acepção. Muito de universalmente humano. Ele aponta para a hipocrisia do politicamente correto. Denuncia a pequenez dos artifícios usados para um posicionamento adaptativo em sociedades que priorizam as boas aparências em detrimento de ações coerentes e consistentes, compromissadas com o exercício da ética e com a tão fugidia verdade. Ele fala da dor da desilusão, por poucos tolerada. Da difícil e rara coragem de admitir e retratar a vida em sua crueza.
O que Roth discute em sua ficção não cabe nos fatos de sua biografia. Zuckerman se afirma na denúncia deste fato. Justifica a supremacia da ficção. E remete os leitores para ela.
Título da Obra: OS FATOS
Autor: PHILIP ROTH
Tradutor: JORIO DAUSTER
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS