As perdas que a vida impõe a cada um podem ser muito difíceis de suportar e é necessário encontrar maneiras de sobreviver a elas. Primeiro seguir em frente e depois voltar a buscar o melhor possível. Viver é, em parte importante, aprender isto. Morrem pessoas queridas, vão-se embora outras, transformam-se identidades, tornando-se estranhas e distantes quando antes eram próximas, mudam aos supetões os lugares ocupados por uma pessoa no meio social imediato, e bem mais pode ser incluído aqui. Com o que é perdido esvaem-se partes do que era quem perdeu. Às vezes fica embotada a capacidade de continuar olhando o mundo e enxergando o que nele há de positivo. Todavia, é plausível um renascer, melhor dizer uma sucessão de renascimentos ao longo do tempo, a despeito e mesmo provocado pelos perecimentos. Forças antes desconhecidas surgem. Ciclos são construídos pelo que desaparece e pelo que surge. Até o fim. Lygia Fagundes Telles (São Paulo, 1923-2022) fala disto no conto “NATAL NA BARCA”, que faz parte do volume “ANTES DO BAILE VERDE”.
Em “NATAL NA BARCA” está-se numa noite de Natal. A narradora faz uma pequena travessia de barco, acompanhada de três outros passageiros. Vão com ela um idoso embriagado e deitado no chão, uma mulher jovem e um bebê em seu colo. Mesmo sem disposição para estabelecer qualquer diálogo naquele momento, ela acaba falando com a mulher desconhecida que carrega a criança. Nota o brilho excepcional de seus olhos. O relato que faz esta personagem impacta a ouvinte, reposiciona-a dentro do que pretendia fazer e do que esperava da pequena viagem. A mulher fala sobre outro filho que morreu enquanto brincava de voar e saltou de cima de um muro, sobre o marido que a abandonou indo viver com uma antiga namorada seis meses antes desse dezembro e revela a razão de sua jornada: está em busca de socorro para o filho que lhe restou e que adoeceu recentemente. Ao descobrir ligeiramente a face do pequeno enfermo a narradora acha que ele já está morto. Quer escapar de ter que presenciar o momento em que a mãe constatará mais esta desgraça e prepara-se para desembarcar rapidamente, como numa fuga. No entanto, quando estão atracando a desconhecida fala que o filho acordou e mostra-o de olhos abertos, vivo. Exclama com alguma alegria “Acordou o dorminhoco! Deve estar agora sem nenhuma febre.” Desejou um bom Natal e se foi. O homem embriagado, alheio a qualquer coisa exceto a conversa com um ser imaginário, parece estar numa espécie de transe que lembra um jeito de estar no mundo, um tipo de alienação. Guardadas as distinções, parece haver nele algo em comum com a postura e intenção da narradora ao empreender o percurso, antes de ser tocada pela luz daquela passageira que atravessava os infortúnios, sem os negar, falando sobre a dureza do que experimentara, afirmando a realidade. E mais, podia mostrar que ainda havia vida até no que parecia morto.
Como em outros contos, Lygia Fagundes Telles condensa em poucas páginas a fartura de ideias sobre o universo humano, promovendo a polissemia na interpretação do que se dá. Um privilégio dos que são capazes de comemorar um Natal, desprovido de qualquer religiosidade, embora pleno de um tipo de fé.
Título da Obra: NATAL NA BARCA (parte de “ANTES DO BAILE VERDE”)
Autora: LYGIA FAGUNDES TELLES
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

Um dos mais belos contos de Lygia Fagundes Telles e é, pra mim, um dos melhores de toda a literatura. A narradora, incrédula, se depara com uma mulher que, sofrida, possui uma fé tão grande que parece realizar um milagre (ressuscitar o próprio filho). Não à toa, a história se passa na noite de Natal. Fé, milagre, sofrimento, são os elementos desse conto brilhante e inesquecível, escrito com uma concisão e uma
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