DESONRA

Há períodos da História em que o mundo se transforma mais rapidamente, torna-se outro em pouco tempo. Novos elementos são incorporados ao conjunto, alterando todo o restante, sem cessar. Expressão da complexidade da vida. O homem é deslocado de seu lugar, rompem-se sintonias e adaptações imprescindíveis são um grande desafio. Há os que os que seguem, os que se beneficiam e os que sucumbem. A maquinaria promotora das metamorfoses é difícil de entender e é raro que seja suficientemente pilotável. Os significados e valores, que eram tomados por sólidos, fenecem, dando espaço para novidades. As ações das pessoas podem ter consequências imprevistas, às vezes trágicas. Em “DESONRA” o sul-africano John Maxwell Coettzee (Cidade do Cabo, 1940), ganhador do Booker Prize duas vezes e do Prêmio Nobel de Literatura em 2003, fala deste conglomerado temático.

“DESONRA” conta a estória de um professor universitário, na casa dos cinquenta anos, divorciado duas vezes e que tenta manter controle sobre si mesmo impondo método à satisfação do desejo sexual, apanágio quase exclusivo de sua vitalidade. Além da atividade sexual moldada um tanto artificialmente, evitando os “perigos” de fazer dela uma decorrência do amor, tem em seu horizonte a existência de uma única filha, que vive distante dele, o projeto de escrever um livro sobre Byron e a amarga frustração no exercício de sua profissão. Uma vida que desbota.

Ele cai em desgraça ao se envolver voluptuosamente com uma aluna de vinte anos. Não luta para diminuir os estragos desta relação em sua posição de professor universitário e na exposição de um tipo de vulnerabilidade, que em âmbito público público é entendida direta e exclusivamente como assédio sexual. Assume o que o sistema moral em que está inserido considera um erro imperdoável, mas que ele, em seu âmago, não vê do mesmo modo. Demitido da universidade vai em busca da filha, Lucy, que vive no campo entre pequenas cidades. Ambos passam por eventos bastante traumáticos enquanto estão juntos. Há muita violência. Seus infortúnios são aparentemente distintos, mas têm muito em comum, quando o olhar do observador não se limita às superfícies. Eles se perdem de si mesmos. O urbano e o rural situam-se na África do Sul pós “apartheid”, onde as questões sociorraciais continuam a alimentar horrores, mesmo que com roupagens diferentes dos que ocorriam antes. O revanchismo e a agressividade entre humanos sobrepujam a busca construtiva e justa da civilidade. Diminuir as injustiças entre os homens revela-se tarefa extremamente difícil, ameaçada por confusões perigosas. No fluir das transformações não ocorre a conquista efetiva de um tipo imprescindível de equidade entre os diferentes grupos populacionais, não diminui a força do racismo e intolerância. Alimentam-se equívocos que dão vazão à expressão do ódio ao invés de fomentar a razão que poderia conduzir aos benefícios da união solidária no combate ao que é ruim.

O que parece simples na trama não o é para os que não se furtam à dúvida e ao pensamento crítico, ao exercício da análise ética. Nisto, importa não se deixar corromper por reduções malignas buscando a união com hordas empoderadas em ondas do “politicamente correto”. É preciso encarar dificuldades impostas pela realidade que o autor retrata.

Está em jogo a preservação do sujeito, a recusa em funcionar como objeto dos que comandam, o que exige muito. Para se sustentar como ator engajado no sentido do ato é necessário, na ficção do texto e na realidade que ele aborda, atravessar camadas sucessivas de interpretação e elaborar o que é determinado pela complexidade nas relações entre humanos.

Coetzee impõe a necessidade de refletir com profundidade sobre problemas que comumente são traduzidos em estereótipos. Vale lembrar que entendimentos instrumentalizados por estereótipos são modos de cegamento. Pai e filha, cada um com sua desonra, veiculam questões atemporais, que podem afetar indivíduos e coletividades em qualquer tempo e lugar. Publicado em 1999, é muito atual.

Título da Obra: DESONRA

Autor: J. M. COETZEE

Tradutor: JOSÉ RUBENS SIQUEIRA

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

Disgrace

There are moments in history when the world seems to change at an accelerated pace, becoming something entirely different in a short span of time. New elements are woven into the fabric of life, reshaping everything else without pause. This is the expression of complexity itself. People are displaced from their roles, familiar harmonies collapse, and the need to adapt becomes an immense challenge. Some manage to follow along, others profit, and many succumb. The machinery driving such metamorphoses is hard to grasp, rarely under human control. Meanings and values once thought solid erode, making way for the new. Human actions acquire unforeseen, sometimes tragic, consequences.

In Disgrace, the South African writer John Maxwell Coetzee (Cape Town, 1940), twice winner of the Booker Prize and awarded the Nobel Prize in Literature in 2003, explores this dense thematic terrain.

The novel follows a university professor in his fifties, divorced twice, who tries to maintain control over his existence by imposing order on his sexual desires—an impulse that has become the last remnant of his vitality—and by holding on to his only daughter. His downfall begins when he engages in an affair with a twenty-year-old student. He makes no attempt to mitigate the damage to his career or his public reputation. Instead, he accepts what the moral system around him deems an unforgivable transgression—though, deep within, he does not see it in the same light. Dismissed from the university, he seeks out his daughter Lucy, who lives on a smallholding in the countryside.

What follows are traumatic events that strike both father and daughter in different ways, though their experiences overlap beneath the surface. Each loses part of themselves in the process. The settings—urban and rural—are anchored in post-apartheid South Africa, where racial and social tensions continue to fuel violence and resentment, even if in different forms than before. Revenge and hostility often prevail over any constructive pursuit of civility and justice.

What seems like a simple story reveals itself to be anything but for readers who refuse to shy away from doubt, critical thought, and ethical reflection. Coetzee’s narrative points us toward those who resist being corrupted by reductive ideologies in order to be absorbed into the ranks of the empowered. At stake is the preservation of subjectivity—the refusal to be reduced to an object of domination. Achieving this requires an exhausting effort: to remain an engaged actor, one must traverse successive layers of interpretation and confront the intricacies of human relationships.

Coetzee compels us to reflect deeply on problems that are too often flattened into stereotypes. Father and daughter, each burdened with their own disgrace, embody timeless questions through their interactions with others. First published in 1999, the novel remains strikingly contemporary.

Title: Disgrace
Author: J. M. Coetzee
Translator: José Rubens Siqueira
Publisher: Companhia das Letras

4 comentários

  1. Luis, cada vez mais vc escreve com uma beleza que merece ter mais espaço para sua riqueza na escrita. Para o leitor, flui como se vc nos levasse pelo seu caminho com olhar e encantamento.

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