A MEDIDA DO ABANDONO

São muitas as maneiras com que os homens negligenciam uns aos outros. A negligência tem múltiplas faces. Através dela diminui-se a importância do outro, seja esse outro quem for e em diferentes circunstâncias. Às vezes o acaso age de modo a criar condições semelhantes às da negligência que pode ser apanágio de comportamentos das pessoas. É comum que se ignore ou recuse conscientemente implicação nas ações necessárias aos cuidados para com o outro e o entorno, próximo ou distante. Negligenciar talvez seja uma variante do desamor, algo que cria ou mantem buracos onde eles não deveriam surgir ou, surgindo, teriam que ser reparados. E eles são espaços para manifestações da violência e destrutividade primitivas que grande parte dos indivíduos e das sociedades teoricamente se esforçam por controlar. O escritor, de alma soteropolitana nascido em Fortaleza em 1968, Toni Araújo, toca neste tema na novela “A MEDIDA DO ABANDONO”.

O enredo é inspirado no conto de fadas “João e Maria” dos irmãos Grimm. Ligação que se dá principalmente pelo que decorre da vulnerabilidade de um casal de irmãos gêmeos ao perderem os pais. Os dois tornam-se presas fáceis para os inumeráveis algozes do mundo. Estão no final da adolescência quando a mãe é assassinada e o pai desaparece da casa onde vivem, a senhoria ameaça desalojá-los e depois põe um traficante para residir com eles. O rapaz já está envolvido com outros criminosos, fazendo “pequenos serviços” que lhes geram renda para a alimentação. Após episódio de extrema contundência eles passam a viver nas ruas e posteriormente num albergue. São arrastados pelo destino, que é insubmisso a qualquer ordenamento para o bem. Acabam por encontrar sua bruxa. A devoradora do que resta de inocência e esperança que pudessem abrigar. Ela desvela o que havia de pior em seu passado recente, é mais uma agente da brutalidade que os consome.

Muitos são os infortúnios vividos pelos irmãos e sucedem-se vertiginosamente. Fazem com que eles migrem de um cotidiano estável e cheio de boas promessas relativas ao futuro para dimensões fatídicas da realidade, que passa a açoitá-los. Eles não estavam preparados para o sofrimento, como nenhuma pessoa está em condições razoavelmente normais. Perdem as boas expectativas que emoldurava suas histórias e vão imergindo nos aspectos sombrios do universo humano até serem tocados por sua crueza mais chocante. O que experimentam através da interação com os outros indivíduos vai dimensionando a amplitude de seu abandono. Estão indefesos. O mal que os assola conduz para eventos de aparência sobrenatural, mas, o que também é trágico é que são o contrário disto, resultam da incontinência da animalidade humana. Aquilo que é da natureza do homem, ainda que minimizada pelos processos civilizatórios, quando estes existem e têm alguma força.

Os contos dos irmãos Grimm, assim como outros contos de fadas, costumam servir para as crianças lidarem com os temores sobre suas fantasias e o contacto com realidade ainda difícil de interpretar. Têm final feliz para dizer que as dificuldades são sempre superadas. Todavia, para além dos contos de fadas, há o momento de se perceber que a maquinaria do viver não trabalha para finais felizes, que não se pode contar com guardiões dos bons propósitos. O enredo de “A MEDIDA DO ABANDONO” aponta para isto, como verdade que se impõe e dissolve as construções/ilusões que confortam.  

Uma novela concisa, que mostra muito em sua tensão narrativa.

Título da Obra: A MEDIDA DO ABANDONO

Autor: TONI ARAÚJO

Editora: VILLA OLÍVIA  

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