Seres humanos sempre manifestaram propensões para se atacarem mutuamente pelos mais diversos motivos e de variadas maneiras, individualmente ou em grupos de todos os tamanhos. A violência empregada com estes fins tem uma infinidade de faces. E a complexidade interpretativa é inerente ao tema. Presumivelmente a agressão máxima é a eliminação de uns por outros, é impedir a existência do outro. O funcionamento íntimo daquele que mata pode diferir amplamente entre os indivíduos que o fazem e nos contextos em que se dão os atos. Estes detalhes dizem sobre o que conforma seus perpetradores. “TOMÁS NEVINSON” de JAVIER MARÍAS (Espanha, 1951-2022), o derradeiro livro do autor, é um mergulho neste universo, através de questões importantes sobre comportamentos das pessoas em suas singularidades, assim como quando têm esmaecidas suas identidades em fusões grupais.
Dialogando com o que afirmaram grandes vultos da literatura, principalmente William Shakespeare, Marías estimula reflexão. Este romance faz duo com o anterior, “BERTA ISLA”, que tratava da esposa de Tomás. Fala de um agente secreto (termo talvez um pouco anacrônico) nascido na Espanha mas com dupla nacionalidade (britânica) que, depois de cair numa emboscada, passa grande parte da vida trabalhando para os serviços secretos ingleses. No início da estória ele está aparentemente “aposentado” e vivendo em Madri, mas é contatado pelo antigo chefe, Tupra, e encarregado ir ao encalço de uma terrorista disfarçada, que pode ser uma de três mulheres. Exceto por alguma noção sobre os horrores praticados pela criminosa que buscará, ele tem pouquíssima informação sobre as candidatas, as quais conhecerá mudando-se para a cidade do noroeste espanhol, onde todas vivem. Tem muita dificuldade de chegar a uma conclusão segura sobre qual delas é seu alvo e teme cometer injustiça. Tupra, que examina à distância as informações coletadas por Tomás, está convencido sobre qual delas é a procurada e pressiona o agente para ou encontrar provas que permitam levá-la a julgamento ou executá-la, tanto para que ela pague pelo mal que já fez como para evitar ações terroristas futuras. Caso ele não conclua sua missão em tempo razoável para quem o comanda as três serão mortas por outros agentes. O desfecho deriva daquilo que importa afetiva e eticamente para o protagonista e da dança de grande número de variáveis implicadas.
Javier MarÍas põe em campo problemas fundamentais para indivíduos e sociedades de todos os tempos, mesmo que com roupagens modificadas ao longo dos séculos. Importam a volatilidade dos sentimentos e interpretações da realidade, as definições de bem e mal em suas transformações e em seus verdadeiros avessos, o fanatismo como uma espécie de recurso primitivo a que alguns indivíduos recorrem, renunciando ao refinamento da sensibilidade e inteligência no afã de pertencimento a um grupo ou de cumprirem missões supostamente justas. Quase em contraposição a estes determinantes o escritor faz valer as agruras impostas pelo funcionamento ético dos que têm capacidade e vontade para isto. Impasses são inevitáveis. O trágico brota do drama, vivido privadamente ou no papel social que se assume. Bem e mal imbricam-se, desafiando as melhores intenções.
A ética, entendida como exame cuidadoso, corajoso e honesto dos próprios valores, é uma das tarefas mais sofisticadas e mesmo árduas para o intelecto humano. Não basta racionalidade. Pode ferir interesses mais comezinhos, às vezes caros às pessoas. Em essência, não é adaptável a campos específicos e não se presta a conveniências. É um exercício, em esforço, em si universal e não se confunde com o entendimento e adesão aos valores sobre os quais versa. Frequentemente é preterida em desfavor da civilidade, da preservação do que há de positivo no que chamamos de humano.
Qualquer um é um potencial destruidor de seu semelhante. A percepção das contradições e falácias que frequentemente é sufocada pelos que buscam a simploriedade das crenças, é aqui salientada por MarÍas. Destaco esta frase: “E esse conceito moderno de “crimes de guerra” é ridículo, é estúpido, porque a guerra é feita sobretudo de crimes, em todas as frentes e do primeiro ao último dia.”
Como a grande parte do que Javier Marías escreveu, este é um belíssimo romance.
Título da Obra: TOMÁS NEVINSON
Autor: JAVIER MARÍAS
Tradutores: JOSELY VIANNA BAPTISTA E EDUARDO BRANDÃO
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
HUMAN BEINGS have always displayed a propensity to attack one another for the most diverse reasons and in the most varied ways—individually or in groups of all sizes. The violence employed for such ends takes on countless forms, and the interpretive complexity of the theme is inherent. Presumably, the ultimate act of aggression is the elimination of one by another—the refusal to allow the other’s existence. The inner workings of one who kills can differ widely among individuals and across the contexts in which such acts occur. These nuances reveal much about what shapes their perpetrators. Tomás Nevinson, by Javier Marías (Spain, 1951–2022), the author’s final novel, is a plunge into this universe, exploring profound questions about human behavior—both in its singularities and when individual identities dissolve into group formations.
Engaging in dialogue with great figures of literature—chief among them William Shakespeare—Marías provokes reflection. This novel forms a duo with the preceding Berta Isla, which told the story of Tomás’s wife. It centers on a secret agent (a term perhaps somewhat anachronistic) born in Spain but holding dual nationality (British). After falling into an ambush, he spends much of his life working for British intelligence. At the start of the narrative, he is apparently “retired” and living in Madrid when he is contacted by his former superior, Tupra, and tasked with tracking down a disguised terrorist—one who may be any of three women. Beyond some vague knowledge of the horrors committed by the criminal he seeks, Tomás has little information about the candidates. To get closer, he relocates to a small town in northwestern Spain, where all three live.
He struggles to reach a firm conclusion about which woman is the target and fears committing an injustice. Tupra, who monitors the investigation from afar, is convinced of the suspect’s identity and pressures Tomás to find evidence to bring her to trial—or, failing that, to execute her. The motive: both to ensure she pays for her past crimes and to prevent future terrorist acts. If Tomás does not complete his mission within a “reasonable” time, all three women will be eliminated by other agents. The outcome depends on what holds emotional and ethical weight for the protagonist—and on the intricate dance of countless variables that shape his decision.
Javier Marías lays bare fundamental dilemmas faced by individuals and societies across the ages, even if clothed in the evolving garments of time. Central are the volatility of feeling and perception, the shifting definitions of good and evil (and their true inversions), and the lure of fanaticism—a primitive refuge some seek by renouncing sensitivity and intelligence in their yearning for belonging or for the supposed fulfillment of a righteous mission.
In near-opposition to such impulses, the author gives form to the anguish of those bound by an ethical conscience. Impasses are inevitable; tragedy blooms from drama, whether lived privately or enacted through one’s social role. Good and evil intertwine, defying even the best intentions.
Ethics, understood as the careful, courageous, and honest examination of one’s own values, is among the most demanding and sophisticated tasks of the human intellect. Rationality alone does not suffice. It can wound even our most cherished interests. In essence, ethics is not adaptable to convenience nor confined to specific domains. It is a universal exercise—a continual effort that transcends mere understanding or adherence to moral precepts. Too often, it is forsaken in favor of civility or the preservation of what we call “the human.”
Anyone, Marías reminds us, is a potential destroyer of their fellow being. The contradictions and fallacies so often suppressed by those who crave the comfort of simplistic beliefs are here laid bare. One sentence stands out:
“And that modern concept of ‘war crimes’ is ridiculous, is stupid, because war consists above all of crimes, on all fronts and from the first to the last day.”
As with much of Javier Marías’s oeuvre, this is a magnificent novel—beautiful, unsettling, and profoundly humane.
Title: Tomás Nevinson
Author: Javier Marías
Translators: Josely Vianna Baptista and Eduardo Brandão
Publisher: Companhia das Letras
Los seres humanos siempre han manifestado una propensión a atacarse mutuamente por los más diversos motivos y de las más variadas maneras, ya sea de forma individual o en grupos de todos los tamaños. La violencia empleada con tales fines presenta infinitas facetas, y la complejidad interpretativa del tema le es inherente. Presumiblemente, la agresión máxima consiste en la eliminación de unos por otros: impedir la existencia del otro. El funcionamiento íntimo de quien mata puede diferir ampliamente entre los individuos que lo hacen y según los contextos en que ocurren tales actos. Estos matices revelan lo que conforma a sus perpetradores. Tomás Nevinson, de Javier Marías (España, 1951–2022), la última novela del autor, es una inmersión en ese universo a través de profundas cuestiones sobre el comportamiento humano, tanto en su singularidad como en la disolución de la identidad individual dentro de los grupos.
En diálogo con las reflexiones de grandes figuras de la literatura —sobre todo William Shakespeare—, Marías provoca la meditación. Esta novela forma un díptico con la anterior, Berta Isla, que trataba sobre la esposa de Tomás. Narra la historia de un agente secreto (término quizás algo anacrónico) nacido en España pero con doble nacionalidad, británica. Tras caer en una emboscada, pasa gran parte de su vida trabajando para los servicios de inteligencia del Reino Unido. Al comienzo de la narración parece “retirado” y vive en Madrid, cuando su antiguo jefe, Tupra, lo contacta y le encarga seguir la pista de una terrorista camuflada que podría ser una entre tres mujeres. Más allá de una vaga noción sobre los horrores cometidos por la criminal, Tomás posee escasísima información sobre las candidatas. Para acercarse a ellas, se traslada a una ciudad del noroeste de España, donde las tres residen.
Le resulta muy difícil llegar a una conclusión segura acerca de cuál de ellas es su objetivo, y teme cometer una injusticia. Tupra, que supervisa la operación a distancia, está convencido de quién es la culpable y presiona a Tomás para que encuentre pruebas que permitan llevarla ante la justicia o, en su defecto, la ejecute. El propósito: que pague por el mal cometido y prevenir futuros actos terroristas. Si no cumple su misión en un plazo “razonable”, las tres mujeres serán eliminadas por otros agentes. El desenlace depende de lo que tiene peso afectivo y ético para el protagonista, así como de la compleja danza de innumerables variables implicadas.
Javier Marías pone en escena dilemas fundamentales para los individuos y las sociedades de todos los tiempos, aunque se revistan de formas cambiantes a lo largo de los siglos. Importan aquí la volatilidad de los sentimientos y de las interpretaciones de la realidad, las mutables definiciones del bien y del mal —y sus verdaderos reversos—, el fanatismo como recurso primitivo al que algunos recurren, renunciando a la sensibilidad y la inteligencia en su afán de pertenecer a un grupo o de cumplir supuestas misiones justas.
En casi contraposición a tales impulsos, el escritor subraya las tribulaciones de quienes poseen conciencia ética y voluntad de actuar conforme a ella. Los impasses son inevitables. Lo trágico brota del drama, vivido en la intimidad o a través del papel social que se asume. El bien y el mal se entrelazan, desafiando las mejores intenciones.
La ética, entendida como un examen cuidadoso, valiente y honesto de los propios valores, es una de las tareas más sofisticadas y arduas del intelecto humano. La racionalidad, por sí sola, no basta. Puede herir intereses íntimos, a menudo muy queridos. En esencia, no se adapta a las conveniencias ni se restringe a ámbitos específicos. Es un ejercicio universal, un esfuerzo permanente, que no se confunde con la mera comprensión o adhesión a los valores que examina. Con frecuencia es relegada en favor de la civilidad o de la preservación de aquello que consideramos humano.
Cualquiera es un potencial destructor de su semejante. La percepción de las contradicciones y falacias, tan a menudo sofocada por quienes buscan la simplicidad de las creencias, es aquí resaltada por Marías. Destaca esta frase:
“Y ese concepto moderno de los ‘crímenes de guerra’ es ridículo, es estúpido, porque la guerra consiste sobre todo en crímenes, en todos los frentes y desde el primer hasta el último día.”
Como gran parte de la obra de Javier Marías, esta es una novela bellísima, profunda y perturbadora, escrita con la elegancia y la lucidez de un maestro.
Título de la obra: Tomás Nevinson
Autor: Javier Marías
Traductores: Josely Vianna Baptista y Eduardo Brandão
Editorial: Companhia das Letras

Bela resenha, Luís. Como sempre, um convite à leitura. Beijos.
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Muito obrigado por comentar, querida Anaelena. Bjo
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