ALVES & C.a

Embora certos comportamentos humanos sejam relativamente comuns em qualquer tempo e lugar, as maneiras de os interpretar e manejar variam bastante conforme o contexto. Como observa José Garcez Ghirardi em “O Mundo Fora de Prumo” os “arcabouços simbólicos” transformam-se ao longo do tempo, levando a grandes mudanças nos sentidos e ações relativos ao que se experimenta ou que se testemunha, tanto em âmbito privado quanto público.  Vamos focalizar o adultério. Geralmente é encarado com alguma naturalidade quando cometido por homens, mas costuma ser visto com dramaticidade maior e eventualmente tragicidade quando praticado por mulheres. Romances do século XlX ficaram célebres falando do tema. “Ana Karenina” de Leon Tolstói e “Madame Bovary” de Gustave Flaubert são exemplos. Eça de Queirós (Portugal, Póvoa-do-Varzim, 1845 – Paris, 1900) também escreveu sobre o assunto mais de uma vez. Entra em pauta aqui a novela publicada após sua morte, “ALVES &C.a

Em “ALVES & C.a” há um triângulo formado por Godofredo, o marido, seu sócio, Machado e a esposa Ludovina. Godofredo é um homem de trinta e seis anos convencional, moralmente irrepreensível, comodista, satisfeito com o que a vida lhe conferiu. Machado é dez anos mais jovem, irrequieto, bonito, namorador, próximo de Godofredo desde a infância, quando seu pai era amigo do atual sócio. Ludovina, uma bela mulher, passa pela trama sem que se possa saber muito sobre seu modo de ser, presume-se que sente alguma insatisfação com o estilo da vida sem vigor que leva. Um dia Godofredo surpreende a esposa e o sócio em uma cena íntima bastante suspeita, fazendo supor um relacionamento amoroso/sexual. Isto vem a ser reforçado por algumas cartas que ele encontra ao vasculhar os guardados da mulher. Assim, expulsa-a e envia-a para a casa do pai. Em seguida passa a conjecturar um duelo ou outra ação em que um dos dois homens morresse para reparar a situação desonrosa. Os amigos mais próximos dos dois rivais negociam uma solução sem violência e sem morte, pois ao final todos entram em acordo sobre não ter havido mais do que um flerte avançado, sem consumação do ato sexual.

Passa-se algum tempo. A falta que Godofredo sente de Ludovina vai ao encontro da vontade dela de retomar o casamento. Eles voltam a viver juntos. Machado e Godofredo continuam sócios e com o tempo voltam a ser amigos, ainda mais ligados do que antes, marcadamente após a morte da mãe do Machado. Este casa-se e as famílias tornam-se unidas.

Nesta novela, ao abordar o adultério feminino, Eça destaca-se de outros autores europeus, mais antigos, contemporâneos seus e até posteriores. A traição e a honra ferida só promovem uma convulsão num primeiro momento, não ganham consistência nos trâmites que se seguem. As contusões têm caráter menos profundo e duradouros do que outros fatores que ordenam as vidas dos personagens. Não há veemência no impacto tocante à masculinidade do traído. É possível pensar que as questões de afirmação de tal masculinidade sejam marginais a outros temas de maior peso. Também não dura o ódio pela esposa ou pelo sócio/amante, tal sentimento não sobrepuja o amor que por eles tinha. Adicionem-se a isto conveniências, que não devem ser desprezadas por rigores sem estofo. Há que se dar tratos aos problemas que tocam à adequação moral de todos os envolvidos, afinal a sociedade pode julgar o fato de modo cruel para os três, desde que não se empreendam atitudes de observância às convenções. Todavia, esmaece a magnitude disto frente ao sentido maior que a vida tem para eles (mais evidente em Godofredo). Parece haver um amiudamento do significado da infidelidade conjugal. A importância das relações ganha maior universalidade. Imperfeições humanas, ao menos estas que constituem o cerne da estória, não levam tão facilmente ao debacle. Vale dizer que não parece se tratar de amoralidade. As convenções morais só regem parcialmente a condução do caso e possivelmente são permeáveis a necessidades que, sob disfarces apropriados, são de maior vulto. Aparentemente outras dimensões de crenças que permeavam já a sociedade portuguesa ou a mentalidade do autor. Nenhum dos protagonistas termina pesadamente condenado em nenhum sentido.

Curiosamente, é possível fazer uma associação com o icônico D. Casmurro de Machado de Assis. Neste resta a dúvida perene e quem sabe fútil sobre se houve ou não consumação de um ato de conjunção carnal entre os possíveis infratores da ordem conjugal. Em “Alves & C.a” tecem-se sutilíssimos indícios de ter havido mesmo algo mais do que foi assumido por todos para a solução pretendida, para que a restauração das boas relações entre os componentes do triângulo. E ainda mais, talvez esse algo tenha perdurado pelos anos que se seguiram.

Eça distingue implicitamente graus de importância no que consistem as relações humanas, o que é mais superficial e socialmente sonoro não o é para o que sustenta a intimidade dos personagens. As aparências precisam ser salvas, mas só são relevantes das portas para fora, das casas que eles habitam ou do escritório que sedia a firma. E todos prosperam.

Título da Obra: ALVES & C.a.

Autor: EÇA DE QUEIRÓS

Editora: RELÓGIO D’ÁGUA (Portugal)

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