HOMERO

Se houve um único Homero, autor da Ilíada e da Odisseia, ou se foi um conjunto de aedos aos quais assim se nomeou, amalgamados na composição dessas obras fundadoras, ninguém sabe ao certo. Homero, como era próprio dos aedos, cantava seus versos na Grécia Arcaica, conforme perambulava por sucessivos povoados. Assim esses cantadores/contadores ganhavam a vida e criavam mundos. Encantavam seus ouvintes e criavam vínculos entre eles e o que contavam. Fomentavam identidades tribais ou nacionais, produziam redes de pertencimento através dos enredos sobre homens e povos.  Tradicionalmente Homero era cego, talvez para poder ver com mais riqueza e precisão as estórias que portava em seu interior e derramava sobre as plateias.

O conto de Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 1919 – Lisboa, 2004) que leva o título “Homero”, componente do volume “Contos Exemplares”, descreve um personagem distinto, mas que tem algo a ver com o aedo grego, talvez pelo avesso, chamado Búzio. Este não era cego, vagava pela zona litorânea e parecia ser constituído maritimamente, nos olhos, no ir e vir, como as marés, no que mostrava e ocultava, nas conchas que usava como castanholas para ritmar sua fala. Não se dirigia especificamente às pessoas. O que tinha a dizer parecia brotar e retornar à natureza, “um canto de palavras quase visíveis que ocupavam espaços no ar, com sua forma, densidade e o seu peso.” Se não um diálogo, uma comemoração.

A narradora segue Búzio encantada, mas sem interagir com ele. Sabe sobre como é visto ou ao menos tratado por outros. Observa o homem num pôr-do-sol, diante do mar. Ele dirige-se primeiro às águas marinhas, como quem estabelece uma conversa, mas elas são parte inseparável da natureza que é um todo. Búzio parece cumprir um ritual de imersão e submissão àquilo de que também ele é elemento. Sabe-se que ele vive de esmolas que não pede e nada diz sobre elas, que tem por companhia um cachorro, que não está só. Não a solidão para aquele que comunga no universo que o constitui, do qual não se exclui. Só ao narrar a existência de Búzio faz-se uma plateia.

A prosa da autora nunca se perda da poesia. Ela foi essencialmente uma poetisa. Assim devia ver o mundo e assim escrevia.

Título da Obra: HOMERO (parte de CONTOS EXEMPLARES)

Autora: SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Editora: ASSÍRIO & ALVIM (Portugal)

2 comentários

  1. Que delícia essas transcrições, me trás história, concepção de mundo e além de tudo a simplicidade do canto que encanta quem ouve.

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