APENAS UM SAXOFONE

É preciso esforço, alguma propensão para desenvolver talentos e uma dose de sorte para aprender a sorver da vida o as coisas boas. E comemorá-las.  Mais comum é que as pessoas menosprezem o que alcançam após disto desfrutarem. Insatisfação e ressentimento tendem a substituir as expectativas. Algumas teorias psicanalíticas e de outras áreas do pensamento apontam para a fatuidade dos objetos de desejo. Estes, ao mostrarem-se insuficientes para o gozo e apaziguamento da alma, costumam ser descartados. No meio do caminho entre expectação e desapontamento há alguma chance de dar justa magnitude ao objeto de desejo.

Diversos são os destinos dos que se desiludem. Alguns passam a desqualificar o que antes consideravam precioso e a aceitar com “riso amarelo” as falsificações por eles mesmos reconhecidas como embustes, tornam-se cínicos. O que poderia ter sido realmente bom é dado como extraviado ou nunca recebido, pois proviria sempre do exterior. O conto “Apenas um Saxofone”, parte de “Antes do Baile Verde” de Lygia Fagundes Telles (São Paulo, 1923-2022) dá voz a uma esmorecida mulher que desfia aspectos de sua personalidade e de sua estória de vida. Sugere sentimentos que talvez tenha em comum com grande parte das pessoas. Com mais de quarenta anos, ela vive imersa na riqueza material propiciada por um homem idoso, de quem não gosta, mas a quem presta serviços como requintada profissional do sexo. Através de observações sobre processo de decoração de sua casa ela dá pistas de seu modo atual de ver o mundo. Tornam-se pregnantes o ônus da idade a que chegou e antevisão da decadência que a espreita. Neste contexto ela se lembra com saudade daquele que foi seu maior amor e ficou no passado. Era um músico, um saxofonista que primeiro só amava a música e o instrumento da qual a extraía e depois passa a amar a protagonista como a uma música. Ela, embriagada pela ânsia de alcançar satisfação plena, faz-se cada vez mais exigente quanto às demonstrações de amor do homem. Anula limites para suas exigências até chegar a um ponto extremo.

A talentosa Lygia expõe com sutileza e refinamento sua percepção do ser humano. Desta vez, pondo em destaque a impossibilidade de resolução do vazio que aflige os indivíduos. A insaciedade aponta para um dos maiores desafios que caracterizam os humanos, tolerar a incompletude. Desassossego da juventude transforma-se em destrutivas tempestades. Fazendo vezes de bonança instala-se uma amarga indiferença. A vida transcorrida e as sucessivas chegadas às bordas do precipício do nada no tudo que se tentou para escapar ao esgotamento do deleite pode não conduzir ao amadurecimento e humildade sapiente. O outro é o depositário da decepção. Não pode cumprir o papel que dele é esperado. O olhar para ele torna-se míope ou desvia-se do que nele é corpo verdadeiro. Ele não mais atrai nem excita. Resta a aniquilação de sua presença concreta para que se transforme em memória acalentadora, aquela que nina as ilusões. Antídotos para a invasiva solidão são extensamente representados pelas falsificações. Não só admitidas ou criadas, mas amadas. Assim, tenta-se distrair a fera gestada pelo vazio.

Na ilustração, foto de tela de Wassily Kandinsky (Rússia, 1866 – França, 1944)

Título da Obra: APENAS UM SAXOFONE (em ANTES DO BAILE VERDE)

Autora: LYGIA FAGUNDES TELLES

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

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