SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO

Italo Calvino (Cuba, 1923 – Itália, 1985) foi um dos mais inventivos escritores da contemporaneidade. Seus livros são variados em forma e propósitos, não compõem uma obra homogênea. Em alguns deles dedicou-se a refletir sobre o papel da literatura na cultura (numa acepção ampla do termo) embora isto sirva bem mais para os (infelizmente) poucos que leem, foi um trabalho precioso. “Se um Viajante numa Noite de Inverno” lançado em 1979 é hoje icônico, quase um manifesto, considerando certos aspectos da escrita e da leitura.

Neste quase-romance ou além-romance Calvino, usando o próprio nome, dirige-se aos personagens e ao leitor. Comenta o que faz e conta estórias. No papel de narrador ele é extremamente hábil criando fragmentos ficcionais que, em suas interrupções e volteios, deslocam o leitor da posição de receptor passivo para a ação no ato de ler. Desafiam-no a transitar pelo texto sem a segurança do arredondamento de sentidos e finalizações dos episódios. Nada é oferecido como “pronto e acabado”. Mais do que relatar algo e dar ao relato a estrutura que teria um romance ou conto convencionais, o escritor desfia fenômenos embutidos no trabalho de construir uma narrativa e ficcionar. Dá transparência aos processos de emissão e recepção da palavra que circula. E como a ficção faz parte do instrumental humano na tentativa de autocompreensão e de tentar tornar o mundo inteligível, o autor trata do que é profundamente verdadeiro na engenharia implicada.

O cerne do livro é especialmente uma reflexão multifacetada, sem formalizações teóricas, sobre a leitura. Calvino propõe que se pense sobre as interações entre o leitor e o texto lido. Uma das questões propostas por ele diz respeito às diferenças quanto a ser o texto lido diretamente ou escutado na leitura feita por outro. Diferem fruição, ritmo e oportunidades interpretativas. Quando aborda a multiplicidade de entendimentos possíveis numa leitura ele diz: “que toda a interpretação exerce sobre o texto uma violência e uma opinião”. As palavras, frases, parágrafos, livros inteiros promovem articulações de ideias, muito para além da singeleza buscada pelos que procuram somente distração ou diversão. Calvino dá relevo à impossibilidade de traduções seguras e apreciações inequívocas sobre o que um autor expressa quando escreve. O que se pode propor ao se falar da leitura de textos literários vale para o entendimento do mundo. Entram em jogo as singularidades e a barafunda produzida em graus variáveis para que haja comunicação entre seres humanos. As generalizações, as afirmações, o que se toma por verdadeiro sobre qualquer coisa devem admitir a dúvida, pois já nascem marcados pela incerteza e incompletude, além de perecibilidade. Todo o sentido que se pode dar a um discurso é dotado de plasticidade e às vezes completamente solúvel. Nenhum significado é totalmente partilhável.

Uma pessoa, em sua singularidade tem que criar sentidos para o que experimenta internamente e quanto ao que a circunda. Os processos de significação são tarefas estruturantes para o indivíduo, organizam-no e capacitam-no para agir. Em âmbito coletivo talvez haja maior perigo em estabelecer sentidos fechados, pois podem acabar funcionando como dogmas e produzindo alienação das individualidades dentro do conjunto. Neste caso, é fundamental questionar, tolerar a insuficiência do conhecimento, a fragmentação do que se apreende e os absurdos possíveis e até frequentes.

Em “Se Um Viajante numa Noite de Inverno” o protagonista real é o leitor. Este tem que viajar pelo livro de Calvino enfrentando o frio que causam a incerteza, a pluralidade, a finitude sem completude, que se apresentam infinitamente e impõem-se ao viver. A condição para degustar o que se lê é a de renunciar à descontração fácil. Esta é frequentemente buscada nas estórias apresentadas como peças inteiras, sem “barrigadas estruturais” que abalem sua coerência. Talvez estas sejam mais destinadas a confortar o leitor que pressente o risco que corre de se perder incessantemente em seu mundo real. Aqui o autor opta por lembrar disto ao invés de oferecer um espaço de alheamento.

Muitos temas vão surgindo embricados nos sucessivos enredos inseridos no livro, sem conclusões definitivas. Como acontece em boas obras da literatura, considerando sua relação com o conhecimento, o meio cultural em que existem, seu papel como carreadores de matérias utilizáveis politicamente, como objetos de mistério, de prestígio e poder, mensageiros o que já se soube e se perdeu, escrituras em línguas mortas, etc.

Este livro já foi tomado por alguns como afirmação do fim do romance como gênero literário. Ao menos quando concebido nas estruturas mais convencionais. Às vezes é classificado como pós-moderno, talvez por apontar o desmanchar no ar de tudo o que parece sólido ou pretende criar a impressão de solidez. Todavia, as classificações costumam servir a motivações contrárias ao espírito de Calvino em seu olhar agudo, crítico e inconformista. Possivelmente, seja mais prolífico encarar a obra como uma fomentadora da diversidade de pensamento uma manjedoura para germinação de ideias. Um tipo de renovação do já gasto sem destruir nada do que foi anteriormente produzido.

Título da Obra: SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO

Autor: ITALO CALVINO

Tradutor: NILSON MOULIN

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

4 comentários

  1. Li e realmente me senti circulando sem eira nem beira, mas com sua excelente interpretação retornarei a ele com outro olhar. Grata por receber suas resenhas.

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