TIA JULIA E O ESCREVINHADOR

O escritor peruano Mario Vargas Llosa (Arequipa, 1936) teve sempre uma vida cheia de movimento. Em muitos sentidos, inclusive no amoroso. “Tia Julia e o Escrevinhador”, lançado em 1977, fala de como se deu seu primeiro casamento e de outros temas caros ao escritor, que ganhou o Prêmio Nobel em 2010.

Aos dezoito anos, o que na época significava ser “menor de idade” no Peru, apaixonou-se por uma tia (por afinidade, pois era irmã da mulher de seu tio). Ela era divorciada e tinha trinta e dois anos. O romance provocou grande tumulto na família. Passados oito anos, depois de se divorciar dela, casou-se com uma prima, sobrinha de Julia e filha do irmão de sua mãe. Além de sobrinho do casal de tios (irmã e cunhado de Julia), tornou-se cunhado e posteriormente genro deles. Todavia, o livro não aborda somente as aventuras para chegar ao primeiro matrimônio. Os capítulos intercalam a relação entre Mario e Julia com fragmentos de novelas de rádio. Estes funcionam como contraponto para o relato da história pessoal e ainda como afirmação do parentesco entre ficção e realidade, inerente a qualquer coisa que se conta.

As novelas radiofônicas tinham grande audiência nos anos cinquenta, especialmente antes do surgimento da televisão. O autor, redator de noticiosos de uma emissora e escritor principiante na época, faz entrever o funcionamento da sociedade em que viveu a juventude, especialmente através de uma estética inspirada pelo espírito dessas novelas. Adentra o radioteatro na construção das estórias, depois interpretadas por atores de quem só se conhecia a voz. Os enredos tendiam a ser fortemente melodramáticos (o que poderia tingir também os noticiários), em consonância com o gosto popular. Pedro Camacho, protagonista maior desta parte do romance, boliviano como tia Julia, é um personagem muito peculiar. Caricatura do jeito de ser comum à maioria das pessoas do meio em que vivia, alcançou muito sucesso ao dar vazão a isto em seus textos. Os toques de absurdo marcavam as novelas e não estavam distantes do modo dos ouvintes interpretarem a vida. Isto se entrelaça ao que ocorria com Vargas Llosa, que também aparentava contrassenso.

Embora houvesse um incômodo por parte de Julia, devido à diferença de idades e à proximidade no interior da família, tocando de leve e indiretamente na questão do desejo incestuoso, as dificuldades impostas por barreiras sociais de comportamento foram enfrentadas. Há referência ao impacto da dureza moral que atingiu os enamorados, dominante em qualquer época, embora sempre com formas e cores variadas. Recursos para disciplinar os seres humanos. Numa outra vertente do livro, Pedro Camacho era movido por valores e concepções estereotipadas, resultando em preconceitos com alto potencial agressivo e destrutivo que transpareciam nas criações radioteatrais. O roteirista acaba mergulhado em grande confusão na elaboração das tramas, sempre refletindo seu modo rígido e ingênuo de pensar. Esta é a parte engraçada do romance, pois ele acaba misturando personagens de diferentes novelas, mortos surgem novamente na mesma narrativa, os mesmos nomes designam pessoas distintas etc. Talvez Vargas Llosa aponte para os imbróglios inevitáveis no que se faz e no que se conta a respeito da história pretensamente verdadeira de cada um, que é de algum modo escrevinhada para dar coerência ao que se imagina viver.

Existe um paralelismo entre o que dá corpo aos vários dramalhões de Camacho e a construção autobiográfica de Vargas Llosa. Ele iniciava a carreira de escritor e buscava afirmar a identidade de homem adulto e arrojado. Os esteios da ficção mostram-se muito semelhantes aos que tornam a realidade tão rocambolesca. O autor sugere que os roteiros para a vida estão cheios de irregularidades, são imprevisíveis e pouco controláveis pela vontade consciente, a despeito do que é tentado em contrário.

Entre o escrevinhador da própria história e o escrevinhador das novelas de rádio, o livro é muito saboroso e divertido.

Título da Obra: TIA JULIA E O ESCREVINHADOR

Autor: MARIO VARGAS LLOSA

Tradutora: JOSÉ RUBENS SIQUEIRA

Editora: ALFAGUARA     

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