Para além da materialidade dos muros, como o que foi construído em Berlim durante a “guerra fria”, os seres humanos costumam viver espremidos pela contradição entre o desejo de aproximação e a tendência a erigir barreiras protetivas em relação aos outros.
“Sinopse de Amor e Guerra” do escritor português Afonso Cruz (Figueira da Foz, 1971) fala de amor e dos obstáculos a ele. Liricamente, mas sem romantismo. Os protagonistas Theobald e Bluma conhecem-se desde muito cedo na infância e compartilham o gosto pela poesia. Amam-se. Vivem em Berlim onde crescem sempre próximos, até que venha a construção do muro, dividindo a cidade e separando seus moradores em dois mundos distintos. Sem possibilidade de escolha por um deles. Tal divisão, em muitos casos, tolheu violentamente essas pessoas do que era imprescindível para que experimentassem alguma felicidade. E esta felicidade, ainda que transitória, tem a função de elemento estruturante e capacitador para suportar a aridez e turbulências de muitos períodos da vida. Amar, neste livro, também é um verbo articulado em circunstâncias outras que não a relação entre os dois jovens. É marcante através da atuação de um tio de Theobald. Com o personagem o autor mostra como a competência para a felicidade abrange muito, universos compostos por gente e por aquilo que fazem, um sentimento elástico e complacente para com as imperfeições humanas e que viaja nas palavras trocadas entre os que as podem dizer. De um modo e de outro, o amor aqui é literatura e vale dizer isto de maneira inversa.
Amar, a união pelo amor, aproxima-se da perfeição impalpável e sempre fugaz almejada por grande parte das pessoas. Mescla-se com a ideia de comunhão com outras. Antecede e às vezes sobrevive às intempéries quase invariavelmente aparecem nas interações. Os empecilhos irrompem em âmbito íntimo, mas também se impõem em domínios coletivos. Muitos atropelos são de responsabilidade daqueles que ignoram a possibilidade da fruição amorosa. É gente que desconhece ou não acha ser direito de todos a proximidade com outros, as trocas e ligações que só se dão na cotidianidade da convivência. Alguns líderes políticos ou chefes de Estado exercem este papel em certos momentos. Como os que dividiram o planeta após o término da guerra em 1945 e posteriormente, em 1961 ao determinar a súbita construção do muro divisório dentro da cidade de Berlim. Indivíduos nessas posições e movidos por motivações obscuras, além das ideológicas, põem em ação mais ampla as engrenagens que impedem algo que funcionaria como uma poesia declamada em uníssono enquanto os humanos conseguem agir em concerto. Tais mecanismos subvertem os recursos com que os humanos manejam a solidão. Esta, condição de natureza resistente, que pouco se ausenta e pesa soberanamente sobre os indivíduos ao longo de suas vidas. A solidão está costurada ao que cada um é. Uma espécie de propriedade humana que é consequência, mas também causa, de conflitos, rupturas e guerras. Uma deusa sem razão. Aquela que oferece ao homem a ideia de poder e de força, produzindo a embriaguez em que surgem bacantes monstruosas. Uma deusa permissiva com o mito de apropriação da fonte inesgotável de satisfação e de superioridade sobre o destino. Mas, este acaba por dissolver as crenças e pune a soberba.
Em sociedade, talvez num movimento que se dê em ondas, surgem muros que cerceiam a liberdade. São erguidos em regimes totalitários ou na instalação de outras supremacias, que costumam oprimir os divergentes. O momento em que acontece a estória deste romance é um dos exemplos trágicos da destrutividade de que os homens são capazes, posta em movimento pela beligerância sempre de prontidão. Um tempo em que se evidencia o desprezo por parte de uma minoria governante por liberdades imprescindíveis para a maioria de governados. Aquelas que não podem ser interpretadas como ausência de limites, mas que fomentam possibilidades cruciais para um certo bem-viver.
Todavia, “o cerceamento da liberdade tende a criar movimentos tão intensos, que destroem qualquer muro. Pode levar anos, mas a derrocada será provável, se não inevitável. E dessa liberdade, não tenha qualquer dúvida, nascerão novas prisões.”. Assim, quando há finais felizes, eles são provisórios, não significam mudanças estruturais no que é o homem e naquilo que rege os sucessivos universos que ele cria. Há nisto uma persistência incontornável. Enquanto for possível ao homem existir.
Título da Obra: SINOPSE DE AMOR E GUERRA
Autor: AFONSO CRUZ
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS (PORTUGAL)

Interessadíssima!… Vi na Amazon ponto com, versão Kindle, 74,00… Fiquei chocada!.. vai passar bom tempo na lista de espera.. rs
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Creio que é por ser edição portuguesa. Ganhei de presente e não sabia do valor. Tomara que seja editado no Brasil também
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