A IGNORÂNCIA

A ignorância ocupa um espaço enorme na vida dos seres humanos. Infinitamente maior do que seus variados contrários. É determinante fundamental na percepção de mundo e nas ações das pessoas. Costuma funcionar invisível, mas potentemente. Supera com folga a memória e outras capacidades mentais utilizadas para tentar entender e registrar o que se vive e agir com propósito. É diversa, multifacetada e resiste com facilidade aos frequentes assaltos para subjugá-la.

Milan Kundera (Brun, antiga Tchecoslováquia, 1929 – Paris, 2023) foi prolífico ao falar de aspectos cruciais daquilo que é ser humano. Tratou do peso que tem o que é ignorado em projetos e realizações dos homens. Apontou para as armadilhas das ilusões de controle, que os cegam com saberes fátuos e narrativas etéreas. “A Ignorância” é um pequeno romance sobre personagens retornados ao país natal, a antiga Tchecoslováquia, após longo exílio. A volta implica apenas o reconhecimento de ilhas de familiaridade quando eles esperavam reaver um território inteiro. Pouco restou do que havia sido seu universo. Kundera aborda especialmente o reencontro entre pessoas que tiveram algum tipo de laço afetivo desfeito e perdido no imenso tempo do qual a memória não se apropriou.

Quando a União Soviética passou a dominar a Tchecoslováquia, especialmente após 1968, todas as propriedades privadas foram estatizadas (incluindo as residências, nas quais os antigos proprietários passavam a morar como inquilinos) e o governo encampou a administração de seus modos de utilização. Aqueles considerados oriundos da burguesia ou que haviam se envolvido em protestos passaram a ter piores condições de vida em sentido amplo. Muitos se exilaram e perderam parte importante de suas identidades. Ao voltarem aos lugares de origem, após a icônica queda do Muro de Berlim em 1989, não encontravam o que haviam deixado e não conseguiam reconhecer na gente, casas, espaços públicos seus cenários de vida pregressa. Os antigos amigos não eram as mesmas pessoas e havia grande distanciamento entre os que regressavam do exílio e os que tinham ficado no País. Algo difícil de ser superado, devido ao que uns ignoravam a respeito dos outros. Isto significava muito mais do que o estranhamento determinado por mudanças causadas pelo tempo transcorrido e diferenças de experiências individuais durante aquele longo intervalo. A intimidade e os vínculos eram, em regra, irrecuperáveis. Apagaram-se. A memória não foi suficiente para preservar o que neles havia de mais essencial. É nesse contexto que Kundera situa seus personagens, faz um retrato em branco e preto para melhor uso de luz e sombra. Explora contrastes e a justa dramaticidade para que se note o que pretende evidenciar. O que diz pode fazer sentido para quem viveu tais situações e para aqueles que estiveram distantes e mal souberam do que aconteceu.

O aparente centro narrativo do romance está no esbarrar casual dos personagens Irena e Josef num aeroporto enquanto aguardam seu voo para Praga. Foram namorados na juventude. Ela o reconhece de imediato, sabe exatamente quem foi, mas ele não se lembra dela com precisão. Irena presume que ele se recorde dela e do vínculo que tiveram. Josef evita explicitar que ignora a identidade da mulher pela qual se sente atraído. Marcam um encontro durante a estadia na cidade em que ambos tinham vivido. É um momento crucial na estória.

Tomando esta situação quase como uma alegoria, Kundera ultrapassa as questões próprias de encontros e desencontros amorosos. O que mais importa é o impacto do vasto campo de desconhecimento em que se movem as pessoas. Todos parecem condenados a interagir meio às cegas. Ele sublinha a superficialidade do interesse das pessoas ao buscarem conhecer as outras em diferentes tipos de relacionamentos. Além das dificuldades de terem alguma clareza sobre quem são, os indivíduos convivem com os que os circundam como irremediáveis estranhos, ainda que dificilmente o percebam. A ignorância estende-se amplamente quanto a um outro indivíduo e aos coletivos. Isto reflete-se no fato de poucos compreenderem razoavelmente bem o que se passa nas sociedades em que vivem. Muitos podem aderir a ideologias, filiarem-se a partidos políticos, militarem, professarem religiões ou rejeitar tudo isso, sem que suas convicções sejam bem-informadas e sopesadas com a profundidade necessária. É raro que as pessoas antevejam as consequências daquilo que escolhem ou do que outros escolhem por elas. Escolher pode ser um ato regido mais por ignorância do que por sapiência. Embora, isto quase nunca chegue a ser considerado. Renunciar a escolher também não representa expressão inequívoca de liberdade e dificilmente equivale a genuína indiferença. O que governa o mundo, atravessando sucessivas fronteiras, não escapa da precariedade do conhecimento humano possível. Assim, a ignorância cruza a existência como real condição do que chamamos viver e conviver.

Título da obra: A IGNORÂNCIA

Autor: MILAN KUNDERA

Tradutora: TERESA BULHÕES CARVALHO DA FONSECA

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

4 comentários

  1. Adorei seu texto. Se já tinha vontade de ler A Ignorância, pela morte recente de Kundera, agora tenho certeza que estará na minha estante amanhã

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