ZURBARÁN

Após a fortalecimento da reforma Protestante no século XVI, especialmente através pela difusão das ideias do monge agostiniano Martinho Lutero (atual Alemanha, 1483-1546), explicitadas em suas Noventa e Cinco Teses, a Igreja Católica reagiu com extensas reformas, alterando padrões de conduta de seus líderes, dando maior grandiosidade aos templos e rituais e modificou as relações com os fiéis (mais marcantemente após o Concílio de Trento que se deu entre 1545 e 1563). Construíram-se muitas igrejas que deveriam veicular a fé católica empregando métodos instrutivos (marcadamente utilizando recursos pictóricos sobre o percurso de Jesus e as vidas de santos, já que poucos sabiam ler e não compreendiam bem o latim). Posteriormente, através da Inquisição, passou à coerção violenta, através de prisões e execuções de hereges. Neste período surgiu a estética barroca estreitamente ligada ao espírito dos tempos e com funções (até certo ponto) bem definidas. O barroco estabeleceu estilo na pintura, escultura, arquitetura e, para um público menor, na literatura. Muitos artistas foram contratados para servir aos homens da Igreja, a reis e outros nobres interessados em reforçar o catolicismo. Na Espanha o século XVII é conhecido como “o século de ouro”, devido à exuberância da criação artística e literária nestes anos e quase toda a cultura impregnou-se do compromisso com as determinações eclesiásticas.

Francisco de Zurbarán (sem data conhecida de nascimento, mas batizado em Fuente de Cantos, Extremadura, em 1598 e falecido em Madrid em 1664) é um dos artistas icônicos desse período. Embora parte de suas pinturas tenha se perdido ao longo do tempo, há ainda muito o que se ver em museus, igrejas e conventos (além da internet). Foi contemporâneo de Ribera, Velázquez e Murillo (Caravaggio, embora tenha vivido na atual Itália, foi um dos principais influenciadores de todos eles). Julgamentos sobre a qualidade técnica e artística de sua obra não ficaram livre de controvérsias, apesar de sua celebridade atual. Alguns o consideram verdadeiramente genial e outros tecem críticas, apontando suas limitações. Aproximou-se do “tenebrismo”, tão em voga, mas não foi tão fortemente marcado por ele.

O escritor britânico (nascido em Paris em 1874 e falecido em Nice em 1965) escreveu um pequeno ensaio, “Zurbarán”, sobre o pintor. Devido a sua origem humilde numa região remota da Espanha (ainda que próxima do importante Mosteiro Real de Santa Maria de Guadalupe, para o qual pintou belos quadros que ainda estão na sacristia), não há dados muito precisos sobre sua história pessoal, até tornar-se mais publicamente conhecido na maturidade. Foi aprendiz de um desenhista/escultor (com status de artesão, embora fosse também pintor) chamado Pedro Díaz de Villanueva, em Sevilha, que era então um notável centro das artes. Casou-se duas vezes e levou vida recolhida, mesmo quando trabalhou para o rei Felipe IV. Viveu a maior parte da vida em Madrid. Parece ter sido um católico fervoroso.

 Neste ensaio, Somerset Maughan manifesta admiração por Zurbarán especialmente pela competência técnica e, especialmente, pela sinceridade que identificou em seu trabalho, não por genialidade. Em uma passagem diz, falando dos grandes artistas, que “O pintor deve ter uma capacidade que se assemelha à do romancista, através da qual pode deslizar da pele do personagem que cria e pensar seus pensamentos e sentir seus sentimentos.”. Ele não inclui Zurbarán nesta categoria. Fala algo sobre sua concepção de beleza: “A beleza é uma palavra solene. É uma palavra de transcendência”, “é uma força”, “É um êxtase que corresponde ao êxtase dos místicos.” Em raros quadros acha que Francisco de Zurbarán teria produzido algo que se aproximasse de causar arrebatamento emocional através do belo no observador. Em alguns deles, como a série dos Hércules que está no Museu do Prado, avalia o pintor quase como um tosco e atribui isto ao fato dele ter tratado de um tema muito distante de sua formação ou talvez de alguma rigidez imaginária. Todavia, considera-o admirável nas santas ricamente vestidas (Cacilda, Isabel, Apollonia e outras), em alguns santos, representados com signos de suas histórias trágicas, nos monges em hábitos brancos e nas (poucas) naturezas mortas.

O escritor defende a ideia de que é um engano supor que o misticismo é sempre apanágio de uma religião. Usa o termo para descrever um tipo de experiência humana que se dá em diversos contextos criados no espaço entre algo e alguém, entre uma obra de arte e seu observador, e que tal fenômeno não poderia se dar com quaisquer obras nem com indiscriminados observadores. Há gente com dotes para isso, de um lado e de outro, não acontece com todo mundo. Adiciona uma citação ilustrativa do filósofo Immanuel Kant, quando este afirmou que o sublime não existe na natureza, mas que é atribuído a ela pela sensibilidade de homens de alto grau de cultura. Maughan aproxima esta noção kantiana daquilo que vê como essencial na relação entre a obra de arte aquele que a aprecia. Semelhantemente, o misticismo não estaria nos limites materiais de um quadro ou escultura, mas na contemplação da obra que alcançou excelência para isto e nas características daquele que que tem uma predisposição peculiar para a experiência mística, incluindo um tipo de formação estética. Crê ser absurdo tomar Zurbarán por um artista capaz de criar obras propícias ao transe místico. Ele não teria pintado sob arroubos desta ordem, assim como talvez não fosse capaz de criar a beleza transcendente necessária à ocorrência do transporte espiritual. Lembra também que, por mais alinhado que o pintor estivesse com os ensinamentos da Igreja, seus quadros dificilmente poderiam levar o apreciador a enlevos de fé, mesmo que os informasse sobre algo da religião ou os deleitasse esteticamente no plano mais terreno.

Pessoalmente, gosto de grande parte do que Zurbarán pintou. Destaco a série dos apóstolos que está no Museu de Arte Antiga de Lisboa, as várias santas em diferentes museus espanhóis como o do Prado e Thyssen-Bornemisza e do São Francisco do Prado. Exceto pelo São Francisco citado, todos têm fundos chapados e as figuras humanas ganham destaque especial, mesmo que sem expressividade fisionômica especial.

Título da Obra: ZURBARÁN

Autor: WILLIAM SOMERSET MAUGHAN

Tradutor: JAIME BARÓN

Editora: CASIMIRO LIBROS (MADRID)

5 comentários

  1. Olá

    A imagem da capa desse livro foi usada para o Imensidão íntima dos Carneiros, de Marcello Maluf, que já li e gostei muito. Conhece?

    Mauro

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  2. Adorei a explicação da experiência mística diante de uma obra de arte. Não sou uma pessoa religiosa e costumo dizer que a experiência mais próxima do divino que já passei foi diante de certas obras de arte, só não sabia que isso estava até na filosofia de Kant.
    A última vez que senti esse deslumbramento foi quando entrei na Santa Sofia em Istambul, basta me lembrar que fico arrepiada.

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  3. Adorei a explicação da experiência mística diante de uma obra de arte. Não sou uma pessoa religiosa e costumo dizer que a experiência mais próxima do divino que já passei foi diante de certas obras de arte, só não sabia que isso estava até na filosofia de Kant.
    A última vez que senti esse deslumbramento foi quando entrei na Santa Sofia em Istambul, basta me lembrar que fico arrepiada.

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