ESTE LIVRO, É SOBRE O QUE?

Perguntar sobre o que fala um livro é uma tentação de quase todo o candidato a seu leitor. E, até certo ponto, existe uma resposta simples, geralmente relacionada ao resumo da trama numa ficção ou uma generalidade de tema em livros de outra natureza. Todavia, vale pensar no que disse o escritor senegalês Mohamed Mbougar Saar: “essa pergunta encarna o Mal na literatura” (em “A Mais Recôndita Memória dos Homens”).

Estórias bem contadas costumam ser atraentes (e é preciso uma boa dose de talento do escritor para conseguir isto). Certos temas refletem predileções dos leitores, algo muito razoável. Antecipar a imersão numa leitura, quase como uma viagem para fora do mundo comum e insatisfatório (que tende a ser o de todos) ou poder abandonar temporariamente os eventos desagradáveis do cotidiano podem ser motivações bastantes. Também vale mencionar a esperança de aprender facilmente alguma coisa. Se o que vai ser lido tiver estruturas simples de linguagem e fechadas em relação a possíveis derivações temáticas ou interpretativas, torna mais fácil o acesso e alcançar os objetivos relacionados com o que foi mencionado acima.

As leituras fáceis tendem a condicionar o apetite literário, levando à busca de outras obras com características semelhantes. Às vezes isto funciona como fator limitante para experimentar aquilo que é novo ou não tão familiar. Algo comparável aos prazeres e hábitos condicionados pelas comidas ultraprocessadas, saborizadas tecnologicamente para fidelizar seus devoradores e torná-los adictos delas. É possível que haja romances, contos, ensaios, poemas ou outras formas de produtos da escrita que tenham boas qualidades formais ou de conteúdo, apesar de funcionarem desse modo para seus leitores. Todavia, em regra, há reservas a serem consideradas quanto ao papel que essas leituras podem ter para seus consumidores. Mesmo assim, vale reconhecer o mérito das obras que propiciam boa diversão. O que não deve ser esquecido é que há verdadeiros universos de possibilidades para os leitores que transcendem o divertimento, mas estes não são encontrados em qualquer livro, nem em qualquer modo de fazer uma leitura.

Livros que se tornam clássicos ou até os que ainda não ganharam esta qualificação, mas são considerados especialmente bons, merecem a atenção dos que escolhem os caminhos da leitura para alargar os limites do olhar sobre o mundo e aperfeiçoar as maneiras de atuar nele. Frequentemente eles são tomados como complexos, mais extensos do que seria palatável, difíceis de resumir ou até chatos para quem busca um simples passatempo. Há uma tendência a ver desse modo as obras maiores, no sentido de sua qualidade literária formal e de seu conteúdo. Mas, elas costumam ser veículos para a ampliação do universo intelectual e modos de inovação na experiência humana ao tentar compreensões menos simplistas do que se vive ou do que se pensa.

Mesmo não sendo possível desdobrar com precisão e extensão absolutas o que um escritor quis dizer com um determinado texto, certas leituras oferecem a oportunidade de reflexão e dilatação interpretativa mais significativas e proveitosas do que outras. É preciso haver disposição para o esforço intelectivo e acolhimento do que é diverso nos padrões de inteligibilidade da experiência humana por parte do leitor. Estas leituras, bem mais do que acontece nas que têm o entretenimento como meta exclusiva, podem produzir transformação e desenvolvimento de recursos da inteligência. Continua-se o trabalho do escritor a partir do que ele escreveu. Elaboram-se aprendizados que criam espaços novos no trânsito para o pensar e ajuizar. Descobrem-se tesouros surpreendentes, que não estavam em mapas. Nestes casos é bem mais complicado fazer sínteses de conteúdos, responder às perguntas como “sobre o que este livro fala?”. É quase impossível antecipar para o candidato à leitura o que ele irá encontrar.

Ler com espírito aberto e inquiridor torna-se um modo de formação, de ampliação dos recursos para a construção de sentidos sobre o que se dá nos mundos do leitor, interno e externo. Amplia capacidades para o exercício da crítica e checagem do que é mais verdadeiro ou menos falacioso nos textos da vida.

É notável na contemporaneidade uma tendência generalizada, cada vez mais dominante após o surgimento de mídias eletrônicas, de tentarmos abreviar o tempo e atenção dedicados às informações recebidas, isoladamente ou em conjunto, num texto (escrito, falado ou mesmo numa imagem). Fica a impressão de que se perderá alguma coisa que costuma ser traduzida por “tempo” com o investimento mais cuidadoso nas tentativas de exploração de um texto. O que se deseja é o que já vem pronto para ingestão rápida, o que está “decodificado” ou “processado”, de fácil absorção e que crie a noção de que, com esses conteúdos, aprende-se o que deve ser sabido. Não se sua por isso. E, ainda que as informações recebidas passem por algum tipo de crivo de seleção, este geralmente é “instalado” na mente do receptor sem grandes custos intelectuais e muitas vezes é formatado para gerar crenças e valores irrefletidos. O que se apreende costuma ser algo “estrangeiro” à terra do pensamento crítico próprio e singular. “Posicionamentos” passam a ser adotados como tendo uma espécie de legitimidade exclusiva, sem trabalho de averiguação e menos ainda de qualquer tipo de criação pessoal que possa funcionar como enriquecimento no ferramental para manejar o manejável na vida, no mundo.

Quando lemos um livro, e quanto melhor ele é, mergulhamos numa infinidade de chances para raciocinar, descobrir, decifrar, sopesar, crer ou descrer, deduzir, inferir, supor, etc. Estas tarefas são incompatíveis com negligências confortáveis e, especialmente, com a delegação de esforço intelectual a terceiros esperando que estes funcionem como guias sobre o que pensar e como agir. Cada leitor, individualmente, deve descobrir o que o texto tem para dizer. Os bons livros oferecem oportunidades plurais de desenvolvimento intelectual e mesmo afetivo.

Concluindo, com um pedido de desculpas por tantas aspas e repetição de algumas palavras, fica a homenagem ao escritor Mohamed Mbougar Sarr, vencedor do Prêmio Goncourt em 2021, por destacar a complexidade e riqueza das boas obras literárias, que transformam os famigerados “spoilers” em bobagens.

Abaixo foto do quadro “Canto de uma Biblioteca” (óleo sobre tela) de Jan Jansz van der Heyden (antiga Flandres 1637-1712); Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid       

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