Há diferentes modos de sentir as dores do cotidiano. E talvez mais variadas ainda sejam as maneiras de expressar o que se sente quanto a isto. A massa dessas dores não se compõe de paroxismos ou de pontadas, mas sim de sentimentos mais vagos e persistentes. Vagos mesmo. Falta-lhes formatos definidores e localizações precisas. Sua abundância invasiva pesa muito na composição das histórias pessoais. Curiosamente, alegrias e felicidades parecem contar menos para a percepção e registro da vida que se leva. Da vida normal. A maioria dos grandes eventos serve mais para cumprir o papel de sonhos na juventude ou adornos das realidades fugazes que experimentamos e, assim como a facilidade para gargalhar, rareiam e acabam indo para o cesto dos mitos, que às vezes são chamados às falas, para que o viver não seja excessivamente trivial. Todavia, as surpresas acontecem e podem criar sentidos inesperados para o que já parecia bem definido.
A memória subsidia a identidade e, mesmo tipicamente imprecisa, presta-se para compor a história que melhor cabe a cada um. Através dela tentamos salvaguardar singularidades. Para isto, além de construir registros sobre nós mesmos e o mundo, contamos com as capacidades organizadoras da mente que permitem-nos criar relatos biográficos. Estabelecemos elos entre fatos (reais ou não tanto), planejamos, aguardamos pelo sonhado, narramos passados que tendem a flutuar e produzimos futuros que só têm solidez no que chamamos esperança. Quando nos deparamos com a perda das capacidades cognitivas em alguém próximo, como no caso da convivência daqueles que são acometidos por uma demência, parece haver uma transfiguração da realidade associada à percepção da falência das biografias e de qualquer sentido que pode ter o “ser alguém” e de compreensão do universo em que se está.
“Eliete: A Vida Normal” da portuguesa Dulce Maria Cardoso (Trás-os-Montes, 1964) aborda esses temas, que nada têm de simples. É um pequeno romance (anunciado como a primeira parte de uma estória que terá seguimento) narrado por uma mulher a partir da constatação de que sua avó tem uma demência (como Alzheimer) e que começa a perder-se do que foi. Eliete é a protagonista que conta sua trajetória desde a infância, quando ainda não tinha sido arrastada para o lugar da vida comum, normal, e prossegue até que nela esteja plenamente instalada. O que a autora mostra é que a vida normal é bastante complexa e desafiadora.
Sendo avesso e direito de um mesmo pano estão a consciência da solidão e a inversa impressão de pertencimento aos grupos de convivência, desde um casal até os familiares, amigos e outros. A intimidade revela-se escassa demais e muitas vezes falsa. Mais verdadeira é a distância entre todos e tenaz é o que há de estranho no que cada um é para o outro. O que se toma por verdadeiro é frágil e as mentiras fluem com autenticidade e função.
Como efeito circunstancial da modernidade, as redes sociais fazem seu papel no enredo e acentuam a noção de solidão, disfarçada pela crença de inclusão em uma ou mais “aglomerações virtuais” que oferecem a ilusão de ligações sólidas e promissoras com centenas ou milhares de pessoas.
Eliete atravessa seus desertos afetivos, reflete e busca freneticamente saídas revitalizadoras. Recusa as minudências normais. Mais do que tudo, a vida normal de Eliete transforma-se em resistência à banalidade trágica do vazio. Também rejeita os excessos de sentidos convencionais ao tentar se situar em meio aos outros e ao que pode ser o destino. Descobre caminhos, arrisca a própria identidade já aparentemente moldada, assim como suas concepções de mundo. Cria e recria-se numa nova normalidade, instável, imprevisível. Sem garantias.
Título da Obra: ELIETE: A VIDA NORMAL
Autora: DULCE MARIA CARDOSO
Editora: TODAVIA

Resenha, como sempre, impecável.
Já está aqui a indicação do livro do mês, no Saúde Mental Vivências! Obrigada por seu trabalho!
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Eu é que agradeço Cristina
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Oi, querido Luís, viva Eliete e viva você e suas belas resenhas. Beijos.
Anaelena
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Obrigado, querida Anaelena
Beijos
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Há mais Elietes perambulando por ai que imaginamos. Eu sou um pouco assim…
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Obrigado por comentar
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