ENCRUZILHADAS

Viver é um constante prosseguir, voluntariamente ou não. O caminho exige escolhas, mesmo sendo pouco controlável e imprevisível. Encruzilhadas a partir das quais se opta por um rumo aparecem sucessivamente. As incertezas são quase sempre incômodas e as pessoas tentam mitigá-las com subterfúgios variados, assim como eleger instrumentos de orientação. Estes incluem, entre múltiplas possibilidades, as crenças e a assunção de uma fé.

O romance “Encruzilhadas” de Jonathan Franzen (Western Springs, EUA, 1959) transporta o leitor para o interior dos Estados Unidos, no início da década de 1970, numa viagem pelos meandros da vida de quatro personagens, membros de uma mesma família, e o seu entorno. Eles representam a classe média do Meio-Oeste americano de uma época recente e que já parece distante, mas ultrapassam lugar e tempo para tratar de questões que são articuláveis em contextos diversos.

Os protagonistas são os pais da família, um pastor protestante e sua esposa, e os três filhos mais velhos, adolescentes. Há um quarto filho na infância, que curiosamente aparece de modo incidental. O leitor passa a conhece-los mais amplamente através do que é contado em capítulos onde um por vez ocupa o centro da narrativa. Não há linearidade na estória, que apesar de partir de eventos concentrados em duas datas (antevéspera do Natal de 1971, na primeira parte e os feriados da Páscoa de 1972 na segunda parte) percorre muitos anos no passado de cada personagem. A religião é referência explícita na busca de rumo para a vida dos pais e depois da filha, os outros filhos não são devotos. O que importa mais, para além dos aspectos místicos, são questões éticas e os padrões e peculiaridades nos relacionamentos dos indivíduos. Como pano de fundo, valendo para todos, são articuladas questões sobre a fé e as crenças de adesão. Boa-fé e má-fé importam muito e parecem fazer parte de um continuum, sobrepujando qualquer fé. Valores adotados ou preconizados (e suas práticas) pretendem dar corpo aos esforços de busca do Bem e da civilidade. O momento histórico serve para a contextualização da moral. A complexidade do mundo faz contraponto à insuficiência das crenças, religiosas ou laicas, que acabam por se converter em armadilhas limitantes nos empreendimentos da compreensão do que acontece de fato. Intenções dissolvem-se em atos díspares delas, revelando aspectos do comportamento humano que dificilmente são freados por construtos teóricos sobre o que é correto e o que não é. Construir e sustentar a civilidade revelam-se tarefas hercúleas.

A diversidade entre indivíduos e coletividades ocupa o devido espaço no livro. Diferenças quanto aos papeis de gênero, orientação sexual, cor da pele, cultura, lugar social, e tudo o que pode causar estranheza ou conflito de interesses a partir das identidades aparecem nas encruzilhadas e podem funcionar como obstáculo ou vias de acesso à boa convivência entre pessoas. A responsabilidade pelo que se escolhe e sobre o como se age permeia o desenrolar da vida, tem peso quase sempre difícil de aquilatar. Tentar compreender o outro como outro e respeitar as necessidades alheias despontam como funções imperativas no exercício da ética. É preciso pensar muito e dizer o necessário para estabelecer bons vínculos entre seres humanos. O lugar de fala está no que se produz ao falar, como uma forma de ação, e não pode ser antecipado ou autenticado pela condição do viver e identidade daquele que fala, não é prerrogativa de ninguém.

Há muitos planos de leitura em “Encruzilhadas”, mas vale destacar duas dimensões: a pessoal íntima e a social. Os valores e capacidades (incluindo a capacidade para a honestidade intelectual e moral) que compõem o caráter de cada personagem e sua função pragmática também são postos em cena na esfera social. A interação entre brancos e negros, entre brancos e indígenas (no caso, os Navajos) e entre providos e desprovidos de bens materiais, aponta para a grande tensão entre intenções e resultados de práticas destinadas a tornar a sociedade mais justa e o mundo melhor. Interessante refletir com o autor sobre os discursos e gestos afirmativos: quanto eles contêm de convicção verdadeira, crível de dentro para fora e o quanto são artifícios para criar falácias destinadas a compor falações pomposas e atos grandiosos, mas sem esteio no que realmente se deseja e no que quem os profere está disposto a fazer.

Um romance muito vivo. Leitura que captura o leitor do início ao fim.

Título: ENCRUZILHADAS

Autor: JONATHAN FRANZEN

Tradutor: JORIO DAUSTER

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

2 comentários

  1. Quero muito ler. Assisti a entrevista do autor, no Roda Viva e fiquei extremamente interessada nele. Tenho a expectativa de que venha preencher a lacuna deixada por Philip Roth.
    Grata pela sua resenha sempre brilhante.
    O único senão é o preço do livro.

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