Uma estória bem contada pode conter robustas verdades, ainda que não sejam óbvias. Assim se dá frequentemente na boa ficção. Muitas vezes o que há de mais verdadeiro na literatura não é uma revelação fatual e explícita e sim algo que é dito com engenho e delicadeza suficientes para poder atravessar os poros da alma do leitor, não ser dissolvido pela rejeição do fundamental em jogo e promover reflexão. E a trama torna-se abrigo e veículo nessa arte logística.
Henry James (Nova York, 1843 – Londres, 1916) foi um grande escritor por muitas razões. Entre elas, o seu grande talento ao dizer nos entremeios de contos e romances o que realmente parecia-lhe o alvo necessário de cada obra, aproveitando os pequenos vãos para tratar de questões que poderiam se ampliar a perder de vista com o leitor receptivo. Falou com sofisticação sobre os aspectos públicos nos mecanismos de funcionamento da sociedade na qual viveu e enveredou também pelo que era guardado na intimidade de seus personagens, às vezes ocultados para atender às exigências sociais, ligando-os às profundezas dos leitores. “Retrato de uma Senhora” é um bom exemplo.
O escritor brasileiro Lima Trindade (Brasília, 1966), além de render homenagem a Henry James, proclama afinidade de forma e conteúdo com ele. O conto (talvez seja melhor designado como uma novela) “O Retrato Ou Um Pouco de Henry James Não Faz Mal a Ninguém” faz as vezes de declaração nesse sentido.
É uma estória que se passa em dois tempos: contemporaneamente, um brasileiro em Portugal se depara com um seu homônimo sepultado na cripta da Igreja de São Francisco, na cidade do Porto e por ficar impactado com coincidência busca saber quem fora aquele homem de um século atrás. Até aí, fica-se com a impressão de surgirá algum mistério que lembre o sobrenatural dando voltas em parafusos, mas não é o caso. A referência a James está em outro lugar, no outro tempo da novela. Ela aparece duplamente: na alusão implícita a aspectos biográficos do autor inspirador, nascido nos Estados Unidos, mas que se tornou britânico voluntariamente e fica mais acentuada no estilo, no modo de abordar seu tema sem escancaramentos, com delicadeza e profundidade.
O finado xará tinha sido funcionário de um dos palácios reais na época de D. Carlos I de Bragança, na virada do século XIX para o XX e a relação entre rei e súdito é que passa a ser o centro da narrativa. O segundo posa, de costas, como modelo de um retrato feito a lápis pelo primeiro, o penúltimo monarca de Portugal, assassinado pouco antes da Proclamação da República no País. O soberano ficou conhecido por sua sofisticação diplomática e talento para as artes, além de possivelmente ter sido uma personalidade dotada de uma complexidade sem alardes. Há fotos dele (além do referido desenho) no bonito volume da P55 Edições. Todavia, ampliando o olhar para desenho e fotos e atentando ao enredo, “O Retrato” revela uma abrangência que transcende as imagens, embora sirva-se delas. O narrador, homônimo do funcionário do rei no Palácio da Pena, em Sintra, ao pesquisar dados sobre o falecido, fala dos elementos de sensualidade/sexualidade e possivelmente amor entre os dois homens do passado. Trindade usa lentes polidas para mostrar imagens de alma, difíceis de ver a olho nu. Nisso também desenha-se a conformação da identidade do personagem narrador. Há maestria à moda “jamesiana” para retratar com sutileza o que é relevante, um jeito de quem usa traçados finos para não cair nas armadilhas que tendem a aprisionar incautos em falsas depreensões de fatos ou interpretações fechadas, o que poderia criar a ilusão de propriedade de sudários que revelariam supostas verdades, quase sempre correspondentes a enganosas crenças. Os donos ou intérpretes de sudários costumam ser os redutores de entendimento, que acabam por desqualificar a riqueza do que só se desenha em sombreados e não pode ser enxergado sob luzes fortes demais. Como em Henry James, o texto ficcional de Trindade destina-se ao tratamento de temas que transbordam o que está concretamente descrito. Nada fica redondamente afirmado, mesmo que haja desenhos e fotos entremeados ao texto. Talvez essas imagens possam ser tomadas como alegorias. Nenhuma pretensão de revelar dados ou interpretar História.
Leitura sedutora que oferece de variada gama de sabores. A estória curta lembra-nos que em certas formas de comunicação a profusão pode limitar a força do que há para ser dito, algo como prolixidade. Lima Trindade escolheu bem o formato, adequado ao refinamento de seu texto. Muito elegante.
Título da Obra: O RETRATO ou Um pouco de Henry James não faz mal a ninguém
Autor: LIMA TRINDADE
Editora: P55 EDIÇÕES (Salvador)
