AS BRASAS

A amizade não cabe em definições simples. Ao menos entre aqueles que evitam as trivialidades sobre ela. E para os que buscam algo para além das circunstâncias e conveniências, sempre tão transitórias. Talvez a persistência de incógnitas nas tentativas de precisar seus significados devam-se à complexidade dos sentimentos e disposições envolvidos. Em seus territórios possivelmente não há lugar para a passionalidade. São vivências quase opostas. A paixão não tem limites, é cega (inclusive para a solidariedade e empatia), despreza a razão, o que dá é por acidente ou por instrumentalização e pretende tudo do outro. A amizade desenha-se através de sentimentos mais estáveis, que evoluem com ritmos lentos e atos de generosidade autêntica. É gema de relações entre dois, não mais. Depende de singularidades, de identidades pessoais, de intimidade. Sem anonimatos. Em coletividades funciona como uma ideia que embasa princípios de normatização e ação, e menos uma experiência pessoal viva.  Todavia, há grande distância entre um projeto e suposição de amizade e sua realidade, entre os entendimentos de cada um, entre necessidades e capacidades dos envolvidos. Sobretudo, ela não pode ser subserviente à inveja. Quando este último sentimento ganha vigor a amizade torna-se uma palavra vã ou um simulacro. “As Brasas” de Sándor Márai (Kassa, Hungria, 1900 – San Diego, EUA, 1989) trata desses afetos e suas contundências. De expectativas, de idealização e do impacto que certos aspectos do caráter podem ter sobre a fraternidade, solidariedade e lealdade entre humanos. Neste contexto o autor fala de cobiça, vilania, intolerância e destrutividade, que ganham lugar e robustez no âmago dos predispostos a isto. Aponta para as incompatibilidades insuperáveis entre indivíduos e para o fato de não haver bálsamo para os que as ignoram. Importa a não reciprocidade de sentimentos, que desconcerta e lesa quando é tomada como automática nos relacionamentos. O enredo é construído durante a conversa entre dois homens idosos, colegas num colégio militar desde a infância, onde tornaram-se amigos e que encontram-se após quarenta e um anos de separação. Com a sugestão de mágoa por traição Márai conta a estória de uma complexa relação triangular (que inclui a esposa de um deles) em que amizade e paixão são justapostas e aquilatadas. Tudo é visto pela vertente somente de um dos personagens. Um homem forte, que torna-se maior na adversidade, na solidão, no exercício reflexivo e que acaba por fazer de seu discurso na noite do encontro um meio de constatação e de afirmação das próprias qualidades. As mesmas que o levaram ao engano e perdas irreparáveis, mas que construíram ou respeitaram valores e conformaram seu mundo. Também compreende algo mais do que esperava ao dizer o que não podia calar e fazer perguntas para as quais, antes de serem feitas, as respostas já estavam dadas. A narrativa não é marcada por inflação emocional, mas nunca aproxima-se da frieza ou indiferença. Aquilo que é ou não partilhável e que pode ser elemento de ligação entre pessoas, como a fruição estética, na arte e especialmente na música, o sentido da honra e da nobreza de atitudes para com o outro, o valor do amor não convertido em sexo, entram em pauta e são finamente articulados. O tempo apaga as chamas e atenua quase tudo, mas restam as brasas. Delas pode alimentar-se a motivação para seguir vivendo, para continuar tentando compreender o que se viveu e se vive, mesmo quando o que foi perdido parece ser o essencial.

Título da Obra: AS BRASAS

Autor: SÁNDOR MÁRAI

Tradutora: ROSA FREIRE D’AGUIAR

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS 

Friendship does not lend itself to simple definitions—at least not for those who avoid the trivialities so often spoken of it, nor for those who seek something beyond circumstance and convenience, both ever so fleeting. Perhaps the persistence of enigmas in attempts to define it stems from the complexity of the feelings and dispositions involved. In its true domain, there is likely no place for passion; the two are almost opposites.

Passion knows no limits; it is blind—even to solidarity and empathy. It scorns reason, gives only by accident or as an instrument of its own desires, and demands everything from the other. Friendship, by contrast, takes shape through more stable sentiments that evolve slowly, in the rhythms of authentic generosity. It is the gem of a relation between two—no more. It depends upon singularities, upon personal identities and intimacy—without anonymity.

Within collectives, it functions rather as an idea underpinning principles of conduct and action, and less as a living personal experience. Yet there lies a vast distance between the project or supposition of friendship and its reality, between each one’s understanding of it, between the needs and capacities of those involved. Above all, friendship cannot be subservient to envy. Once envy gains strength, friendship becomes an empty word—or a simulacrum.

Sándor Márai’s Embers (Kassa, Hungary, 1900 – San Diego, USA, 1989) explores these affections and their ferocities—expectations, idealizations, and the impact certain traits of character may have upon fraternity, solidarity, and loyalty among human beings. In this context, the author writes of greed, villainy, intolerance, and destructiveness—forces that take root and grow strong in those predisposed to them. He points to the insurmountable incompatibilities between individuals, and to the absence of balm for those who ignore them.

The story turns upon the nonreciprocity of feeling—how it disorients and wounds when taken as automatic in relationships. The narrative unfolds as a conversation between two elderly men, friends since their youth at a military academy, who meet again after forty-one years of separation. Under the shadow of a suggested betrayal, Márai tells the story of a complex triangular relationship (which includes the wife of one of them), where friendship and passion are juxtaposed and weighed.

All is seen through the perspective of a single man—a strong figure who grows larger in adversity, solitude, and reflective exercise, and who, on the night of reunion, turns his long speech into both a reckoning and an affirmation of his own virtues. The very qualities that led him into error and irreparable loss are also those that forged his values and shaped his world. He comes to understand more than he had expected by voicing what could no longer be silenced and posing questions for which the answers were already known before they were asked.

The narrative is never inflated with emotion, yet it never strays toward coldness or indifference. What can and cannot be shared between people—the aesthetic communion found in art and especially in music, the sense of honor and nobility in one’s conduct toward the other, the worth of love untransformed into sex—all find their place and are finely woven.

Time extinguishes the flames and softens nearly everything, yet the embers remain. From them one may draw the motive to go on living, to keep seeking to understand what was lived and what is still being lived, even when what was lost seems to be the essential.

Title of the Work: Embers
Author: Sándor Márai
Translator: Rosa Freire d’Aguiar
Publisher: Companhia das Letras


La amistad no cabe en definiciones simples, al menos entre quienes evitan las trivialidades que suelen decirse sobre ella, y entre aquellos que buscan algo más allá de las circunstancias y conveniencias, siempre tan transitorias. Tal vez la persistencia de incógnitas en los intentos de precisar su significado se deba a la complejidad de los sentimientos y disposiciones que la conforman. En su territorio, probablemente no haya lugar para la pasión; son vivencias casi opuestas.

La pasión no conoce límites: es ciega —incluso para la solidaridad y la empatía—, desprecia la razón, da lo que ofrece por accidente o por cálculo, y pretende todo del otro. La amistad, en cambio, se dibuja a través de sentimientos más estables, que evolucionan con ritmos lentos y con actos de generosidad auténtica. Es la gema de una relación entre dos, no más. Depende de las singularidades, de las identidades personales, de la intimidad. Sin anonimatos.

En las colectividades funciona más como una idea que sirve de base a principios de normatividad y acción, y menos como una experiencia personal viva. Sin embargo, hay una gran distancia entre el proyecto o la suposición de la amistad y su realidad, entre los entendimientos de cada uno, entre las necesidades y las capacidades de los implicados. Sobre todo, la amistad no puede ser servil a la envidia. Cuando este último sentimiento gana vigor, la amistad se convierte en una palabra vana o en un simulacro.

Las brasas, de Sándor Márai (Kassa, Hungría, 1900 – San Diego, EE. UU., 1989), trata de esos afectos y de su contundencia: de las expectativas, de la idealización y del impacto que ciertos rasgos del carácter pueden ejercer sobre la fraternidad, la solidaridad y la lealtad entre los seres humanos. En este contexto, el autor habla de la codicia, de la vileza, de la intolerancia y de la destructividad que cobran cuerpo y fuerza en el fondo de quienes están predispuestos a ellas. Señala las incompatibilidades insuperables entre los individuos y el hecho de que no hay bálsamo para quienes las ignoran.

Importa la falta de reciprocidad de los sentimientos, que desconcierta y hiere cuando se da por supuesta en las relaciones. El argumento se construye durante una conversación entre dos hombres ancianos, compañeros de un colegio militar desde la infancia, que se reencuentran después de cuarenta y un años de separación. Con el trasfondo de un dolor por la traición, Márai narra la historia de una compleja relación triangular (que incluye a la esposa de uno de ellos), en la que amistad y pasión se yuxtaponen y se ponen a prueba.

Todo se percibe desde la mirada de uno solo de los personajes: un hombre fuerte, que se engrandece en la adversidad, en la soledad, en el ejercicio reflexivo, y que acaba convirtiendo su discurso, en la noche del reencuentro, en un medio de constatación y de afirmación de sus propias cualidades. Las mismas que lo llevaron al engaño y a las pérdidas irreparables, pero que edificaron o respetaron valores y dieron forma a su mundo. Comprende algo más de lo que esperaba al decir lo que no podía callar y formular preguntas cuyas respuestas ya estaban dadas antes de ser pronunciadas.

La narración no está marcada por una inflación emocional, pero nunca se aproxima a la frialdad ni a la indiferencia. Aquello que puede o no compartirse entre las personas —como la fruición estética, en el arte y especialmente en la música, el sentido del honor y de la nobleza de las actitudes hacia el otro, el valor del amor no convertido en sexo— entra en escena y se articula con fineza.

El tiempo apaga las llamas y atenúa casi todo, pero quedan las brasas. De ellas puede alimentarse la motivación para seguir viviendo, para continuar intentando comprender lo que se ha vivido y lo que aún se vive, incluso cuando lo perdido parece ser lo esencial.

Título de la obra: El Último Encuentro
Autor: Sándor Márai
Traductora: Rosa Freire d’Aguiar
Editorial: Companhia das Letras

2 comentários

Deixe um comentário