A CHAVE

Desejo sexual é um imperativo quase universal. De onde vem e para onde vai têm sido questões perturbadoras para o intelecto. O advento da Psicanálise pôs em cena a ideia de que seres humanos têm como forças motrizes as pulsões, para além daquilo que concebemos como instintos no mundo animal (ao qual pertencemos e no qual nos distinguimos por certas peculiaridades).

Aparentemente só os humanos são movidos pelo desejo e não exclusivamente por necessidade de uma “realização” biológica. A ideia de pulsão, em contraposição a instinto, é significativa para essa distinção. Num momento de sua obra Sigmund Freud (1856-1939) propôs a existência de duas pulsões: a pulsão de morte, sem objeto, talvez a pulsão por excelência, e a pulsão sexual, investida em objetos cambiantes, um pouco mais permeável à racionalidade. Pulsão, investida num objeto ou “livre”, ruma sempre para a satisfação/aplacamento. Quando há alvo (pulsão sexual) ele é quase sempre provisório. O único desfecho definitivo é a morte (na pulsão não investida num objeto). Partindo desta vertente de discurso, podemos considerar a vida sexual ponto de convergência fátua entre a materialidade de um ato com a provisoriedade da intenção. E algo essencial para sustentar a vida.

Enigmática em origens, desígnios e formatos, a sexualidade enlaça homens, mulheres e quaisquer outros gêneros pensáveis. O sexo, em imaginação ou em ato costuma ser uma espécie de amo e senhor do comportamento durante grande parte da vida. Não se deixa apreender por explicações fáceis, e nem por subserviências intelectuais. Costuma desdenhar do esforços para controle ou domínio pela racionalidade. Sexo é sempre mistério, rebeldia, inexorabilidade. Esvazia nomes. Subverte processos de significação. Promove o debacle de muitas morais.

Com o refinamento oriental e a coragem “ageográfica” e atemporal que lhe são característicos Junichiro Tanizaki (Japão, 1886-1965) escreveu “A Chave”. É um pequeno romance tardio em sua carreira que trata deste tema. Exceto pelo engenho estético, não há outras manobras de contenção para falar das forças provenientes do desejo sexual neste livro. O autor, que já havia ousado pisar livremente nesse terreno em obras anteriores, como “Voragem”, aqui fala do que se passa entre quatro personagens cujo protagonismo é difícil de discernir ou pelo menos fixar. Um casal de meia idade, sua filha e um amigo, potencial noivo para a jovem. Usando a tradicional delicadeza e senso de elegância nipônicas, Tanizaki desnuda transgressões na valorizada ordem dos costumes e tradições. Despe o que é sexual de adjetivos morais críveis, sempre apertados demais para contemporizar. O desejo sexual aparece na intimidade de tatames e ofurôs. E também na vã tentativa de apreendê-lo numa imagem fotografada. Alude ao amálgama entre permissões veladas e proibições fingidas. O dizer e omitir estruturam as sofisticadas mensagens escritas nos diários dos dois personagens sêniores e regem a interação verbal entre todos os participantes do enredo. Curiosamente, o que é transposto para os diários parece dirigir as ações, além de servir como registro. Todavia, há nisto truques de ilusionismo que funcionam como estratégias para dar esteio ao objeto de desejo. Talvez ardis para delineá-lo, captura-lo, torna-lo menos efêmero. Se alguém pensar em perversão, nesse âmbito poderá perder-se na impressão do que se vislumbra no avesso de um delicado papel japonês, no qual foram desenhados belos ideogramas que, se olhados de frente, mostram-se muito diversos do que se imaginou. O cru e o altamente elaborado fundem-se.

Até o fim do livro as motivações de cada personagem não se deixam capturar pelo que é explicitado, ludibriam o leitor. Terminada a leitura isso não cessa. Como acontece com o desejo em múltiplos lugares fora da trama ficcional. Como a pulsão. Algo que continua fazendo aparições. Até que a morte imponha outros enigmas.

Título da Obra: A CHAVE

Autor: JUNICHIRO TANIZAKI

Tradutor: JEFFERSON JOSÉ TEIXEIRA

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

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