Há muitos mundos dentro do mundo que frequentemente se supõe único. Eles são tão distintos, estranhos entre si, que merecem ser considerados em suas peculiaridades. Como em tudo o que é humano, as compreensões sobre eles são sempre singulares, imperfeitas e complexas. Fazer parte de um mundo, transitar por seus caminhos e lidar com as dificuldades impostas pelo que não se domina costuma implicar moldagens próprias nas pessoas que nele habitam. Pode ser desafiador demais para as capacidades dos homens, mas a riqueza dos afetos conta muito para não sucumbir às adversidades e para que se possa desfrutar do que é bom. Sustentar a vida mesmo sob impacto de privações e obstáculos e, eventualmente amá-la, depende disto, em grande parte. O escritor franco-lituano ROMAIN GARY (Lituânia, 1914 – França, 1980) fala sobre o tema no tocante romance “A VIDA PELA FRENTE”. Com este livro ele ganhou pela segunda vez o prestigioso Prêmio Goncourt.
A estória é narrada por Momo, um menino de quatorze anos, que foi levado a acreditar que tinha dez. Ele é filho de uma prostituta. Não tem lembranças ou informações sobre seus pais biológicos e, por razões práticas e legais, está sendo educado desde os três anos por uma senhora, Madame Rosa, que também já tinha exercido o mesmo ofício de sua mãe quando mais jovem e que ao ficar mais velha passou a se ocupar das crianças ao invés de buscar seu sustento no comércio do sexo. No apartamento em que vivem foi lar de outras crianças com origens semelhantes, mas o vínculo que Momo estabeleceu com sua protetora foi muito mais forte do que no caso das outras. Ele é muçulmano e ela judia.
O que mais faz brilhar o livro é o envolvimento do leitor com protagonista. Viaja-se por seu discurso infanto-juvenil e o modo encantador de entender o que acontece a ele e a sua volta. Há combinação de ingenuidade e perspicácia em seu olhar, evidenciando uma forma peculiar de sapiência. Seu conhecimento e modo de expressão são compatíveis com a infância/adolescência e com a instrução informal que vai recebendo ou captando no entorno imediato. Ele mostra clareza e sofisticação ao tratar do que afronta a razão. Articula questões difíceis e fundamentais. As soluções que lhe parecem naturais e necessárias são tradução de sensibilidade e do espírito generoso que nele se desenvolveu.
“A VIDA PELA FRENTE” é mais do que tudo uma estória de amor e de sobrevivência. Ambos amalgamados. Tal junção dissolve preconceitos e outras pequenezas humanas. O fanatismo determinado pela cegueira na adesão a crenças (entre as quais as da fé religiosa), a impermeabilidade ao que é culturalmente diverso e a intolerância quanto aos comportamentos relativos ao sexo e identidades de gênero dissolvem-se e desaparecem nas interações pessoais, dando lugar à solidariedade e uma espécie de comunhão no altruísmo. O autor sugere que a persistência em viver depende especialmente de amor. A capacidade para amar a vida que faz alguém existir e se desdobra incessantemente traduz-se no amor pelo outro e torna possível a experiência da beleza. Tal coisa não prescinde de esforços e coragem, refletindo o que é belo em quem detém a autoria do viver.
Título da Obra: A VIDA PELA FRENTE
Autor: ROMAIN GARY (com o pseudônimo ÉMILE AJAR)
Tradutor: ANDRÉ TELLES
Editora: TODAVIA
There are many worlds within the world one so often assumes to be singular. They are so distinct, so mutually strange, that they deserve to be regarded in their particularities. As with all things human, our understanding of them is always individual, imperfect, and complex. To belong to a world, to walk its paths and confront the difficulties imposed by what one cannot master usually implies a unique shaping of the people who inhabit it. Such demands may exceed human capacities, yet the richness of affection matters greatly—both for not succumbing to adversity and for being able to enjoy what is good. To sustain life even under the impact of deprivation and obstacles and, eventually, to love it, depends largely on this. The French-Lithuanian writer Romain Gary (Lithuania, 1914 – France, 1980) addresses this theme in the touching novel The Life Before Us. With this book, he won the prestigious Prix Goncourt for the second time.
The story is narrated by Momo, a fourteen-year-old boy who had been led to believe he was ten. He is the son of a prostitute. He has no memories or information about his biological parents and, for practical and legal reasons, has been raised since the age of three by a woman, Madame Rosa, who had practiced the same trade as his mother in her youth and, once older, chose to care for children instead of seeking her livelihood in the sex trade. The apartment in which they live has sheltered other children of similar origins, yet the bond Momo forges with his guardian is far stronger than in any of the other cases. He is Muslim, and she is Jewish.
What makes the book truly shine is the reader’s involvement with its protagonist. We travel through his youthful voice and his charming way of understanding what happens to him and around him. His gaze blends innocence and sharp insight, revealing a peculiar kind of wisdom. His knowledge and manner of expression accord with childhood and early adolescence, as well as with the informal instruction he receives—or absorbs—from his immediate surroundings. He shows clarity and sophistication in confronting what defies reason. He articulates difficult, fundamental questions. The solutions that seem natural and necessary to him translate his sensitivity and the generous spirit that has taken shape within him.
The Life Before Us is, above all, a story of love and survival—fused together. This union dissolves prejudice and other human pettinesses. Fanaticism born of blind adherence to beliefs (including religious faith), impermeability to cultural difference, and intolerance toward behaviors related to sex and gender identity all fade and disappear in the realm of personal interaction, giving way to solidarity and a kind of communion in altruism. The author suggests that the persistence of life depends especially on love. The capacity to love the life that makes one exist and unfolds ceaselessly expresses itself in love for the other and makes the experience of beauty possible. Such a thing requires effort and courage, reflecting the beauty of the one who authorizes their own living.
Title of the Work: THE LIFE BEFORE US
Author: ROMAIN GARY (under the pseudonym ÉMILE AJAR)
Translator (Portuguese edition): ANDRÉ TELLES
Publisher: TODAVIA

Que beleza de resenha Luís . Resolvi comprar o livro. Grande abraço
CurtirCurtido por 1 pessoa
Muito obrigado por seu comentário, querido Luiz! Grande abraço
CurtirCurtir
Luis
Gostei muito da sua resenha e reli o livro. O narrador não psicologiza, não moraliza, atém-se aos fatos como uma criança de dez anos que, na verdade, tem quatorze. Cercado pela sordidez, capta a essência do amor de seres despossuídos de suas identidades e ao se narrar para o dr Ramon se descobre como sujeito de uma história e uma identidade, a sua. Maria
CurtirCurtido por 1 pessoa
Muito obrigado pelo comentário, querida Maria!
CurtirCurtir