Há eventos da vida que podem ser traumáticos no momento da ocorrência e que continuam produzindo danos por longo tempo. A extensão e a natureza da autoria de cada um nos desdobramentos disto importam e são desafios para os que tentam preservar racionalidade e objetividade ao tecerem suas histórias. “A VERGONHA”, da ganhadora do Prêmio Nobel em 2022 Annie Ernaux (Lilebonne, França, 1940), transita neste âmbito.
Aos doze anos a narradora presenciou uma cena de agressão entre os pais, que interpretou sempre como tentativa de assassinato da mãe pelo pai. A mãe fizera críticas aparentemente duras e insistentes (não especificadas no livro) que levaram o homem a grande descontrole emocional. Em seguida ele arrastou a mulher, prendeu-a contra a parede com uma das mãos e ameaçou-a usando uma foice na outra mão. A mãe pedia socorro à filha. Não chegou a haver ferimento no corpo da mulher, mas tudo foi muito tenso. Ainda assim, pouco depois do acontecido a família saiu para passear de bicicleta no campo, como fazia comumente aos domingos. A menina não recebeu explicações de nenhum dos pais e não conseguiu buscá-las por iniciativa própria. Passou a ter um sentimento de vergonha em relação a si mesma e a eles. Tal sentimento despontou em muitos momentos de sua vida e, mesmo que tenha tido origem no ato de violência, parece ter relação com diversas situações, na maioria ligadas à sensação de inferioridade social na pequena cidade em que viviam.
A autora fala de sua infância e em alguns “flashs” da vida adulta. Mais para o final do relato é que toca na questão da vergonha. Embora o sentimento seja claro para ela, a explicitação verbal e elaboração ficaram truncadas até que pudesse escrever sobre o comportamento dos pais e algo de sua trajetória. Manteve-se distante de uma análise mais ampla do que experimentou. Algumas poucas vezes conseguiu falar laconicamente da tentativa de homicídio da mãe pelo pai para um namorado. Nunca considerou que seu modo de entender ou de não entender o que aconteceu estava restrito a sua interpretação, que talvez não coincidisse com o que os pais pensavam sobre aquele episódio. Há indícios de que o modo de ver do casal diferia do da filha, especialmente por terem saído para a habitual excursão dominical na mesma tarde da briga. Também parecem ser muito distintos entre ela e o casal os significados de comportamentos que tinham e da percepção de sua posição na sociedade local (especialmente por parte da mãe).
Embora a escrita de Ernaux seja tida por muitos como um relato objetivo, não deixa de ser o que se denomina autoficção. Às vezes dá a impressão de que a carga ficcional é grande, sem sugerir com isto nada que se assemelhe a simulação, fantasia ou criação inteiramente desvinculada da realidade biográfica factual. A questão reside no que cada um faz com o que foi feito de si, como são interpretados os fatos e onde entram na complexa teia de significações íntimas e sempre singulares. Estória e história passam a coincidir, como o que eventualmente se dá nos dilemas semânticos que têm como objeto estes dois termos. Escrever e descrever parece ser uma busca de libertação de si mesma, de fazer ajustes na identidade imprecisamente opressiva com a qual tem se movido no mundo.
Título da Obra: A VERGONHA
Autora: ANNIE ERNAUX
Tradutora: MARÍLIA GARCIA
Editora: FÓSFORO
