SUL DA FRONTEIRA, OESTE DO SOL

O presente, em suas múltiplas dimensões, contém restos do passado. Geralmente enredos compostos de memórias fragmentadas e afetos que se atualizam. Parte do que se está vivendo é embalado em frustração pelo que não se alcançou ou pela perda de sentido e importância no que se fez. Impõe-se uma busca que parece não ter fim. Alimentar certas fantasias amacia os cotidianos. Tudo muito comum, mas dificilmente banal. Haruki Murakami (Kyoto, Japão, 1949) fala disto no breve romance “SUL DA FRONTEIRA, OESTE DO SOL”.

O protagonista, Hajime, carregou ao longo dos anos a marcante lembrança de sua amizade com Shimamoto. Período da meninice em que tinham muitos pontos em comum. A convivência com ela influenciou seu modo de ver o mundo, contribuiu para construir uma estética do viver. Tinham doze anos quando ouviam juntos os discos do pai dela, especialmente peças eruditas e um disco de Nat King Cole. Conversavam. Criaram um tipo de intimidade antes desconhecida por ambos. Em poucos meses foram separados ao mudarem para cidades diferentes. Cresceram distantes um do outro. Depois, ele teve uma primeira namorada, Izumi, com quem rompeu traumaticamente ao traí-la com uma prima dela, mais velha e casada. Hajime decepcionou-se com o que encontrou ao frequentar a universidade em Tóquio. O emprego que conseguiu numa editora de livros didáticos apontava para um destino muito aquém do que ele esperara. Nesse tempo, conheceu outra moça, Yukiko, de família abastada, por quem se apaixonou. Casaram-se e tiveram duas filhas. Auxiliado pelo sogro ele criou dois bares de jazz e livrou-se do que julgava ser uma condenação à mediocridade profissional. Apesar de considerar-se feliz no casamento, ter conforto material e acesso à arte, não deixou de pensar em Shimamoto. Quando ela o procura em um de seus bares eles estabelecem uma estranha relação. Ela não se dá a conhecer como a mulher adulta que é e acaba por afirmar-se como aquela que Hajime não pode “ter”.

Através da narrativa fluente e de aparência simples, Murakami toca em temas potencialmente difíceis de serem encarados. O vazio experimentado por muitos ao esgotarem expectativas torna-se uma ameaça ao bem-estar. O sentimento de plenitude é quase invariavelmente uma ilusão, uma ideia que não se converte em algo que verdadeiramente se possa sentir ou desfrutar. Graus variáveis de insatisfação correspondem a um tipo de regra no funcionamento humano, uma “presença” quase constante para muitos. Idealizar possibilidades futuras, assim como dourar o que se origina no passado talvez sejam modos de negar ou tentar contornar a ameaçadora percepção do esvaziamento relativos a crenças, valores e resultantes dos atos concluídos. Possivelmente seja esta a real condição de existência dos humanos, relevante para os mais atentos ou por aqueles que não rejeitam as inquietações, voluntária ou involuntariamente. Aludindo a um entendimento psicanalítico, o mistério de Shimamoto e sua dança de fugacidade nos encontros com Hajime conferem-lhe características comuns a tudo aquilo que se presta a encarnar provisoriamente o desejo.

O título, além de bonito, é muito significativo. O “sul da fronteira” vem de uma canção interpretada por Nat King Cole e “oeste do sol” é referência a uma lenda siberiana.

Título da Obra: SUL DA FRONTEIRA, OESTE DO SOL

Autor: HARUKI MURAKAMI

Tradutora: RITA KOHL

Editora: ALFAGUARA

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