UM CHÁ BEM FORTE E TRÊS XÍCARAS

Lygia Fagundes Telles (São Paulo, 1923-2022), sempre viva na obra literária que legou, teve o talento para refletir com amplidão sobre o que iria traduzir em belos textos. A capacidade de sintetizar em poucas páginas situações complexas e de transportar o leitor para dentro de uma cena sempre foi um dom. Encarrega o leitor de presumir o que ela não explicitou, mas nunca o deixa sozinho nesta tarefa. Ilumina-o com luz brilhante, que é mais intensa nos contos.

“UM CHÁ BEM FORTE E TRÊS XÍCARAS”, componente do volume “Antes do Baile Verde”, é um exemplo de sofisticação para descrever sentimentos dolorosos e fazer despontar constatações que a maioria não gosta de fazer. Maria Camila e sua empregada conversam numa varanda. Há o pousar de uma borboleta amarela sobre uma rosa vermelha para sorver seus sumos interiores. Mais incidentalmente as personagens referem-se aos sons desagradáveis do entorno, alguém que toca mal um piano e que antes já produzira o mesmo desconforto através de um violino. Observações aparentemente banais que ganham dimensões metafóricas, quando descobrimos que Camila, já longe da juventude, aguarda a visita da possível amante de seu marido. A ligação do homem com moça é disfarçada em natural proximidade entre estagiária e seu mestre num laboratório.

O olhar de Maria Camila é corajoso, mas sem frontalidade. Ela não manifesta julgamentos comezinhos. Talvez um recurso protetor para não deteriorar aquilo que ainda pode ser preservado ou para não travar batalhas dadas por perdidas. Delicadeza próxima do registro da fragilidade. Quem sabe desejo de conservar o muito construído num casamento, atitude que pode reger esta e outras formas de relações entre pessoas. Justapõe o que fenece e o que resiste. Sua apreensão, decepção, sofrimento transmitem-se em pequenos gestos, assim como possível anseio por reparação. No breve diálogo entre as duas personagens vislumbra-se o esboço de uma trama e intui-se a imensidão do que se passa nos universos de cada uma das duas mulheres.

Lygia Fagundes Telles fala com um jeito que lembra o que frequentemente se atribui à feminilidade, encanta também por isto. Certamente uma perscrutadora dos recantos do próprio gênero. Mas vai muito além. Ultrapassa as linguagens atribuídas aos gêneros, diluindo as tipificações deste naipe. Mergulha na reflexão de que não se vê o fundo. O que faz reluzir por onde trafega é a riqueza de entendimentos para as questões humanas.

Título da Obra: UM CHÁ BEM FORTE E TRÊS CHÍCARAS (parte de ANTES DO BAILE VERDE)

Autora: LYGIA FAGUNDES TELLES

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS  

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