VIVA!

Quanto os homens conseguem ser justos? O que pode significar “ser justo”? Como entender as manifestações de bem e mal, combinadas nos indivíduos de modos tão complexos? O que realmente se transforma no homem através das revoluções e das produções literárias/artísticas? O que há para celebrar? Estas perguntas cabem na leitura de “VIVA!” de Patrick Deville (França, 1957).

“VIVA!” é um “romance sem ficção” ou quase sem ficção. Criação assentada em recriação de eventos históricos. Um tipo de celebração, mas também um caminho para observar a radical contradição entre as intenções e os resultados dos atos que elas motivam. Beleza e horror fundidos tragicamente naquilo que significa ser humano. E a arte literária como uma tradução disto.

Capítulos breves narram eventos ocorridos na primeira metade do século XX, que são parte da grande convulsão que se deu no pensamento e na História. Desdobramentos ainda constatáveis na contemporaneidade. Muito foi convertido em mito. O México, ao ser local de passagem e de destino para vários personagens e pelo que representava para eles, é mais do que cenário para o romance. Os eixos da narrativa são extraídos das biografias de Leon Trotsky, o revolucionário proscrito e condenado à morte por Stálin e do escritor inglês Malcolm Lowry. Mas, há bem mais gente circulando, hoje celebridades, com flashes biográficos oferecidos ao leitor.

Permeiam o romance a mescla entre projetos salvadores, saneadores do egoísmo humano e da miséria material, com as múltiplas formas de violência que brotam das boas e más intenções dos homens, incluindo as monstruosidades geradas nas lutas por poder, faces do oportunismo e do fanatismo.

Trotskismo versus stalinismo constituíram-se como correntes acirradamente inimigas quando Stálin baniu Trotsky e ordenou uma caçada para eliminá-lo, assim como seus familiares e amigos, na ânsia de garantir sua posição de comando supremo do que estava se tornando a URSS e possivelmente para dar vazão ao ressentimento invejoso causado pelo brilhantismo intelectual do então inimigo. O Estado passou a significar o próprio Stálin e a maquinaria de controle sobre a população. Mais um totalitarismo, com a etiqueta de ditadura do proletariado. Ao proscrever Trotsky, Stálin aproveitou para atribuir-lhe culpa por tudo o que ia mal em sua gestão. Adicionalmente, muitos outros revolucionários de primeira hora foram presos, torturados e mortos, acusados de traição ao povo ou à revolução.

Também vivendo temporariamente no México havia Malcolm Lowry. Sustentado pelo pai rico, afogando-se no álcool, perambulava pela realidade e construía a carreira literária que culminaria na publicação de “À Sombra do Vulcão”, obra icônica.

A admiração de Deville pela grande literatura, pelos escritores que o formaram, pelo anseio por transformação do mundo que identificou neles e também em outros, atuando em campos distintos, poderia ser justificativa para escrever este livro. Ele parece encantado por pessoas que amalgamaram o sentido de suas vidas a ideais e agiram em consonância com isto. Todavia, não se propõe a discutir ou a legitimar aqui as ideias que embasam tais ideais. Saúda algo que está no humano, que espelha a contradição da busca de um mundo menos duro e violento justamente com dureza e violência.

A extensa doação de si mesmo para uma causa, a abdicação de elementos fundamentais na singularidade de cada um, a terceirização do questionamento ético e suas consequências, são temas articuláveis a partir desta leitura. Para além da glória, e talvez da alteração do curso dos acontecimentos, um tipo de fracasso parece estar sempre no destino dos que assumem missões demasiado desvinculadas das possibilidades humanas, mesmo que não anule seus feitos.

Citando o que diz Alberto Manguel na apresentação do livro, “…nem o lugar que julgamos conhecer, nem a pessoa que vemos diariamente no espelho chegam a constituir certezas.”

Título da Obra: VIVA!

Autor: PATRICK DEVILLE

Apresentação: ALBERTO MANGUEL

Tradutora: MARILIA SCALZO

Editora: 34

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