HOMEM COMUM

Todos os seres humanos percorrem caminhos incertos no viver. Transformam-se e vêm o mundo multiplicar-se em lugares quase sempre estranhos às previsões. As sequências de eventos, alguns produtos da vontade, a maioria alheia a ela, transportam afetos e dão forma às biografias. Razão e lógica frequentemente falham. Para muitos resta um tipo de desconcerto quando o fim se aproxima, especialmente para os que conseguiram envelhecer. “HOMEM COMUM” do escritor estadunidense Philip Roth (Newark, 1933 – New York, 2018) trata disto. Algo que demanda talento literário e inteligência aguçada na conversão em tema ficcional.

Um homem chega aos setenta e um anos tendo colecionado diversas intervenções cirúrgicas distribuídas por eles. Apesar dos riscos que tantas vezes o assaltaram pode viver relativamente livre do pessimismo e de apreensões. Tornou-se um ser sensual, amoroso, permeável ao bem e mal presente nas interações com outros humanos sem fabricar escudos protetores e pouco suscetível ao fel em que tantos submergem. A improbabilidade da própria morte blindava-o até quando experimentava a perda de pessoas próximas e queridas. Casou-se três vezes. A primeira mulher e os dois filhos que teve com ela foram seus mais crus fracassos afetivos. A segunda esposa foi a que pareceu perfeita para seguir a seu lado por toda a vida, assim como aconteceu com a filha que tiveram. Num arroubo sexual acabou por se envolver com aquela que seria sua terceira parceira. Com esta experimentou intenso prazer do sexo no frescor da juventude da moça e na novidade que representava. No restante só frustração que também resultou em divórcio. Passou a morar sozinho numa casa de praia do litoral de New Jersey e trabalhar como professor de pintura depois de se aposentar de uma eficiente carreira de publicitário.

O personagem sempre agiu com correção no que concernia ao que esperava de si mesmo, ao que considerava que uma pessoa de bom caráter deveria ser. Tal conduta nunca implicou a ideia de perfeição ou de ausência de parcela de culpa por aquilo que desandou em sua história, como o distanciamento imposto pelos filhos do primeiro casamento quando este desmoronou. Contudo, não era a culpa de quem cometeu um erro execrável, mas a de quem deixou de atender às expectativas dos amados e passou a ser considerado volúvel ou desleal. Ao trair a segunda esposa, com mentiras sobre o relacionamento com outras mulheres, acabou por assumir o peso da responsabilidade que lhe cabia, o casal não se pôs sob a clave do ódio, desfez-se. Na terceira união ficou patente algum tipo de incapacidade par enxergar a companheira para além do desejo e do gozo sexual. Teve ótima relação com o irmão mais velho, muito mais recompensado pelo sucesso profissional, até que o corpo começou a impor-lhe sérias limitações e ao ver o outro sempre tão saudável passou a ter uma inveja que jamais sentira antes, algo insólito, mas incontornável. Afastaram-se, apesar de nunca terem se desentendido. Contas feitas, restou um significativo montante de solidão. Ainda assim, ele seguiu adiante e tornou-se alguém mais sensível e delicado no convívio com os que o cercavam. Parecia mais capaz de amar os vivos e os mortos. Todavia, o destino fez-se visível e palpável, antepondo-se a tudo, mesmo que não anulasse nada. Destino que foi acima de tudo a decadência do corpo, a dor física, o sofrimento de estar cada vez mais só, mesmo havendo gente por perto. Assim a ideia da morte ganhou espaço, insidiosamente. Anunciou-se a derradeira comunhão em que todos transformam-se no mesmo nada. O que há de mais comum entre todos os viventes. Qualquer um. Talvez, numa certa medida, para os humanos, comum como a ilusão de escapar à nadificação.

Philip Roth, um dos maiores escritores que já andaram pelo mundo, conseguiu, neste e em muitos outros livros, falar do que é radicalmente comum e, talvez por isto, verdadeiramente fundamental. Simplicidade formal, beleza e força de alma.

Título da obra: HOMEM COMUM

Autor: PHILIP ROTH

Tradutor: PAULO HENRIQUES BRITTO

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS    

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