A relação com o outro, com o não-eu, é complexa, contundente e absolutamente fundamental para qualquer pessoa. Sem a presença de outros indivíduos não se constitui a identidade de um humano. Inicialmente isto implica materialidades, depois representações simbólicas e outras abstrações. Espaço em que também é erigida a cultura. Em “A BONECA DE KOKOSCHKA” o escritor português Afonso Cruz (Figueira da Foz, 1971) aborda este tema. Certo é que há pluralidade de assuntos a se recortar da leitura, variados estímulos para reflexão.
O livro é composto de modo que os muitos personagens e as tramas não estão compromissados com uma coerência imediata de conjunto. São estranhos ao que se poderia esperar mais corriqueiramente das gentes e suas histórias. Compõem algo como fábulas sem “uma moral”, ao menos num primeiro momento. Os sentidos de sua existência devem ser garimpados ou, mais apropriadamente, construídos pelo leitor. Trata-se de um mosaico com peças de diferentes naturezas que por vezes se justapõem, noutras se sobrepõem e eventualmente se fundem. Mosaico caleidoscópico. Ao lado dos personagens inventados, estão em cena seres que viveram fora dos limites do livro, o que não quer dizer que sejam tratados como elementos distintos dos que cabem numa ficção. Estes costumam fazer parte do imaginário intelectual e artístico de uma parte do mundo, como Oskar Kokoschka (Império Austro-Húngaro, 1886 – Suíça, 1980) e Alma Mahler (Império Austro-Húngaro, 1879 – Nova York, 1964).
O título alude à paixão de Kokoschka por Alma e à estratégia do pintor quando, abandonado por ela depois de dois anos de tórrida paixão, manda construir uma boneca à semelhança da amada. Ele fantasiava relacionar-se com o simulacro como se fosse sua mulher, mas mantendo o total controle ao prescindir de sua alma. Após curto intervalo ele acaba por quebrar a boneca com uma garrafada e joga-a no lixo. Prevaleceu a percepção do impossível, a decepção incontornável. Afinal, o outro não pode ser um brinquedo. Na altura do relacionamento deles, Alma era viúva recente de Gustav Mahler (compositor austro-húngaro); depois ela ainda se casaria com Walter Gropius (arquiteto alemão, fundador da Bauhaus) e Franz Werfel (escritor checo). Excepcionalmente bonita, ela também era uma referência cultural viva. Ter dado este nome ao romance talvez indique o que o autor mais estava valorizando em sua construção.
Afonso Cruz trata do grande poder da ficção, em sentido amplo. Todavia, não deixa de indicar seus limites e limitações. Nisto, cria beleza, dissolve a fixidez de interpretações sobre a realidade. Sugere que as narrativas tecidas pelos homens, sobre quem são, sobre o Bem e o Mal, sobre valores, na adesão às ideologias e muito mais, se olhadas atentamente, sob a proteção da liberdade, são artifícios e assim devem ser tomados, ainda que contenham o que é circunstancialmente verdadeiro e sejam produtos necessários na busca da razão ou de justificativas e sentidos para a vida. Lembram, mesmo que enviesadamente, os recursos de Kokoschka contra aflições e a pretensão desarrazoada ao mandar fazer a boneca para substituir Alma.
Título da Obra: A BONECA DE KOKOCHKA
Autor: AFONSO CRUZ
Editora: DUBLINENSE
